Formação

A hermenêutica da Sagrada Escritura na Igreja

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A Igreja, lugar originário da hermenêutica da Bíblia

 29. Outro grande tema surgido durante o Sínodo, sobre o qualquero debruçar-me agora, é a interpretação da Sagrada Escritura na Igreja. Eprecisamente a ligação intrínseca entre Palavra e fé põe em evidência que aautêntica hermenêutica da Bíblia só pode ser feita na fé eclesial, que tem oseu paradigma no sim de Maria. A este respeito, São Boaventura afirma que, sema fé, não há chave de acesso ao texto sagrado: «Esta é o conhecimento de JesusCristo, do qual têm origem, como de uma fonte, a segurança e a inteligência detoda a Sagrada Escritura. Por isso é impossível que alguém possa entrar para aconhecer, se antes não tiver a fé infusa de Cristo que é lanterna, porta etambém fundamento de toda a Escritura».[84] E São Tomás de Aquino, mencionandoSanto Agostinho, insiste vigorosamente: «A letra do Evangelho também mata, sefaltar a graça interior da fé que cura».[85]

 Isto permite-nos assinalar um critério fundamental dahermenêutica bíblica: o lugar originário da interpretação da Escritura é a vidada Igreja. Esta afirmação não indica a referência eclesial como um critérioextrínseco ao qual se devem submeter os exegetas, mas é uma exigência daprópria realidade das Escrituras e do modo como se formaram ao longo do tempo.De facto, «as tradições de fé formavam o ambiente vital onde se inseriu aactividade literária dos autores da Sagrada Escritura. Esta inserção englobavatambém a participação na vida litúrgica e na actividade externa dascomunidades, no seu mundo espiritual, na sua cultura e nas vicissitudes do seudestino histórico. Por isso, de modo semelhante, a interpretação da SagradaEscritura exige a participação dos exegetas em toda a vida e em toda a fé dacomunidade crente do seu tempo».[86] Por conseguinte, «devendo a SagradaEscritura ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foiescrita»,[87] é preciso que os exegetas, os teólogos e todo o Povo de Deus seabeirem dela por aquilo que realmente é: como Palavra de Deus que Se noscomunica através de palavras humanas (cf. 1 Ts 2, 13). Trata-se de um dadoconstante e implícito na própria Bíblia: «Nenhuma profecia da Escritura é deinterpretação particular, porque jamais uma profecia foi proferida pela vontadedos homens. Inspirados pelo Espírito Santo é que os homens santos falaram emnome de Deus» (2 Pd 1, 20-21). Aliás, é precisamente a fé da Igreja quereconhece na Bíblia a Palavra de Deus; como admiravelmente diz Santo Agostinho,«não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da IgrejaCatólica».[88] O Espírito Santo, que anima a vida da Igreja, é que torna capazde interpretar autenticamente as Escrituras. A Bíblia é o livro da Igreja e, apartir da imanência dela na vida eclesial, brota também a sua verdadeirahermenêutica.

 30. São Jerónimo recorda que, sozinhos, nunca poderemos lera Escritura. Encontramos demasiadas portas fechadas e caímos facilmente emerro. A Bíblia foi escrita pelo Povo de Deus e para o Povo de Deus, sob ainspiração do Espírito Santo. Somente com o «nós», isto é, nesta comunhão com oPovo de Deus, podemos realmente entrar no núcleo da verdade que o próprio Deusnos quer dizer.[89] Aquele grande estudioso, para quem «a ignorância dasEscrituras é ignorância de Cristo»,[90] afirma que o carácter eclesial dainterpretação bíblica não é uma exigência imposta do exterior; o Livro éprecisamente a voz do Povo de Deus peregrino, e só na fé deste Povo é queestamos, por assim dizer, na tonalidade justa para compreender a SagradaEscritura. Uma autêntica interpretação da Bíblia deve estar sempre em harmónicaconcordância com a fé da Igreja Católica. Jerónimo escrevia assim a um sacerdote:«Permanece firmemente apegado à doutrina tradicional que te foi ensinada, paraque possas exortar segundo a sã doutrina e rebater aqueles que acontradizem».[91]

 Abordagens do texto sagrado que prescindam da fé podemsugerir elementos interessantes ao deterem-se sobre a estrutura do texto e assuas formas; inevitavelmente, porém, tal tentativa seria apenas preliminar eestruturalmente incompleta. De facto, como foi afirmado pela PontifíciaComissão Bíblica, repercutindo um princípio compartilhado na hermenêuticamoderna, «o justo conhecimento do texto bíblico só é acessível a quem tem umaafinidade vital com aquilo de que fala o texto».[92] Tudo isto põe em relevo arelação entre a vida espiritual e a hermenêutica da Escritura. De facto, «com ocrescimento da vida no Espírito, cresce também no leitor a compreensão dasrealidades de que fala o texto bíblico».[93] Uma intensa e verdadeiraexperiência eclesial não pode deixar de incrementar a inteligência da féautêntica a respeito da Palavra de Deus; e, vice-versa, a leitura na fé dasEscrituras faz crescer a própria vida eclesial. Daqui podemos compreender de ummodo novo a conhecida afirmação de São Gregório Magno: «As palavras divinascrescem juntamente com quem as lê».[94] Assim, a escuta da Palavra de Deusintroduz e incrementa a comunhão eclesial com todos os que caminham na fé.

 «A alma da sagrada teologia»

 31. «O estudo destes sagrados livros deve ser como que aalma da sagrada teologia»:[95] esta afirmação da Constituição dogmática DeiVerbum foi-se-nos tornando ao longo destes anos cada vez mais familiar. Podemosdizer que o período sucessivo ao Concílio Vaticano II, no que se refere aosestudos teológicos e exegéticos, citou frequentemente esta frase como símbolodo renovado interesse pela Sagrada Escritura. Também a XII Assembleia do Sínododos Bispos se referiu várias vezes a esta conhecida afirmação, para indicar arelação entre investigação histórica e hermenêutica da fé aplicadas ao textosagrado. Nesta perspectiva, os Padres reconheceram, com alegria, o crescimentodo estudo da Palavra de Deus na Igreja ao longo dos últimos decénios eexprimiram um vivo agradecimento aos numerosos exegetas e teólogos que, com asua dedicação, empenho e competência, deram e ainda dão uma contribuição essencialpara o aprofundamento do sentido das Escrituras, enfrentando os problemascomplexos que o nosso tempo coloca à investigação bíblica.[96] Expressaramsentimentos de sincera gratidão também aos membros da Pontifícia ComissãoBíblica que se sucederam nestes últimos anos e que, em estreita relação com aCongregação para a Doutrina da Fé, continuam a dar o seu qualificado contributopara enfrentar questões peculiares inerentes ao estudo da Sagrada Escritura.Além disso, o Sínodo sentiu a necessidade de se interrogar sobre o estado dosestudos bíblicos actuais e sobre a sua relevância no âmbito teológico. Defacto, da relação fecunda entre exegese e teologia depende, em grande parte, aeficácia pastoral da acção da Igreja e da vida espiritual dos fiéis. Por isso,considero importante retomar algumas reflexões surgidas no debate havido sobreeste tema nos trabalhos do Sínodo.

 Desenvolvimento da investigação bíblica e Magistérioeclesial

 32. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer os benefíciosque a exegese histórico-crítica e os outros métodos de análise do texto,desenvolvidos em tempos mais recentes, trouxeram para a vida da Igreja.[97]Segundo a visão católica da Sagrada Escritura, a atenção a estes métodos éimprescindível e está ligada ao realismo da encarnação: «Esta necessidade é aconsequência do princípio cristão formulado no Evangelho de João 1, 14: Verbumcaro factum est. O facto histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã. Ahistória da salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história e, porisso, deve-se estudar com os métodos de uma investigação histórica séria».[98]Por isso, o estudo da Bíblia exige o conhecimento e o uso apropriado destesmétodos de pesquisa. Se é verdade que esta sensibilidade no âmbito dos estudosse desenvolveu mais intensamente na época moderna, embora não de igual modo portoda a parte, todavia na sã tradição eclesial sempre houve amor pelo estudo da«letra». Basta recordar aqui a cultura monástica, à qual em última análisedevemos o fundamento da cultura europeia: na sua raiz, está o interesse pelapalavra. O desejo de Deus inclui o amor pela palavra em todas as suasdimensões: «Visto que, na Palavra bíblica, Deus caminha para nós e nós paraEle, é preciso aprender a penetrar no segredo da língua, compreendê–la na suaestrutura e no seu modo de se exprimir. Assim, devido precisamente à procura deDeus, tornam-se importantes as ciências profanas que nos indicam as vias rumo àlíngua».[99]

 33. O Magistério vivo da Igreja, ao qual compete «o encargode interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou contida naTradição»,[100] interveio com sapiente equilíbrio relativamente à justa posiçãoa tomar face à introdução dos novos métodos de análise histórica. Refiro-me, demodo particular, às encíclicas Providentissimus Deus do Papa Leão XIII e Divinoafflante Spiritu do Papa Pio XII. O meu venerável predecessor João Paulo IIrecordou a importância destes documentos para a exegese e a teologia, porocasião da celebração do centenário e cinquentenário respectivamente da suapublicação.[101] A intervenção do Papa Leão XIII teve o mérito de proteger ainterpretação católica da Bíblia dos ataques do racionalismo, sem contudo serefugiar num sentido espiritual separado da história. Não desprezava a críticacientífica; desconfiava-se somente «das opiniões preconcebidas que pretendemfundar-se sobre a ciência mas, na realidade, fazem astuciosamente sair aciência do seu campo».[102] Por sua vez, o Papa Pio XII encontrava-se peranteos ataques dos adeptos duma exegese chamada mística, que recusava qualquerabordagem científica. Com grande sensibilidade, a Encíclica Divino afflanteSpiritu evitou que se desenvolvesse a ideia de uma dicotomia entre a «exegesecientífica» para o uso apologético e a «interpretação espiritual reservada aouso interno», afirmando, pelo contrário, quer o «alcance teológico do sentidoliteral metodicamente definido», quer a pertença da «determinação do sentidoespiritual (…) ao campo da ciência exegética».[103] De tal modo ambos osdocumentos recusam «a ruptura entre o humano e o divino, entre a pesquisacientífica e a visão da fé, entre o sentido literal e o sentidoespiritual».[104] Este equilíbrio foi, sucessivamente, expresso no documento de1993 da Pontifícia Comissão Bíblica: «No seu trabalho de interpretação, osexegetas católicos jamais devem esquecer que interpretam a Palavra de Deus. Asua tarefa não termina depois que distinguiram as fontes, definiram as formasou explicaram os processos literários. O objectivo do seu trabalho só está alcançadoquando tiverem esclarecido o significado do texto bíblico como Palavra actualde Deus».[105]

 A hermenêutica bíblica conciliar: uma indicação a acolher

 34. A partir deste horizonte, podem-se apreciar melhor osgrandes princípios da interpretação próprios da exegese católica expressos peloConcílio Vaticano II, particularmente na Constituição dogmática Dei Verbum:«Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneirahumana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quiscomunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmentequiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suaspalavras».[106] O Concílio, por um lado, sublinha, como elementos fundamentaispara identificar o significado pretendido pelo hagiógrafo, o estudo dos génerosliterários e a contextualização; por outro, devendo a Escritura serinterpretada no mesmo Espírito em que foi escrita, a Constituição dogmáticaindica três critérios de base para se respeitar a dimensão divina da Bíblia: 1)interpretar o texto tendo presente a unidade de toda a Escritura; isto hojechama-se exegese canónica; 2) ter presente a Tradição viva de toda a Igreja; 3)observar a analogia da fé. «Somente quando se observam os dois níveis metodológicos,histórico-crítico e teológico, é que se pode falar de uma exegese teológica, deuma exegese adequada a este Livro».[107]

 Os Padres sinodais afirmaram, justamente, que o frutopositivo produzido pelo uso da investigação histórico-crítica moderna é inegável.Mas, enquanto a exegese académica actual, mesmo católica, trabalha a alto nívelno que se refere à metodologia histórico-crítica, incluindo as suas maisrecentes integrações, é forçoso exigir um estudo análogo da dimensão teológicados textos bíblicos, para que progrida o aprofundamento segundo os trêselementos indicados pela Constituição dogmática Dei Verbum.[108]

Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini –Introdução »

 


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