Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer
O livro de Tobias, na Bíblia, traz a história edificante de doispersonagens, Tobias e Sara, que procuraram andar pelos caminhos daverdade e da justiça durante toda a sua vida (cf Tb 1,3). Passaram pormil provações, mas não perderam a fé e a confiança em Deus, sendo, porisso, recompensados. Tomemos aqui apenas a figura emblemática de Tobiaspara uma reflexão sobre alguns aspectos fundamentais da religião.
Tobias é praticante fiel da Lei de Moisés longe da pátria, nocontexto difícil da cidade de Nínive, na Caldéia; o cuidado dos pobrese a prática das obras de misericórdia, como o sepultamento digno dosmortos abandonados pelas ruas e praças, fazem-no enfrentar opreconceito, a zombaria e o desprezo dos vizinhos. Sofre tambémperseguições e sua própria vida está em perigo, mas ele não desiste defazer o que seu coração indica como certo e agradável a Deus. Paracompletar, ele próprio é atingido por uma desgraça e fica cego; sua féem Deus é questionada até por familiares e ele cai numa angustiantecrise religiosa. Vem-lhe a tentação de pensar que está fazendo tudoerrado, que seus detratores é que estão certos e que a prática do bem eo esforço por uma vida reta não valem a pena. A crise das pessoasreligiosas não é rara e a perseverança na fé, com freqüência, é postaduramente à prova pelas contradições da vida. A história de Tobias temalgo em comum com a do justo Jó e de muitos outros personagensbíblicos, que passam por situações semelhantes. Coisas assim acontecemtambém hoje!
Na sua angústia e solidão, Tobias se desabafa diante de Deus; não éproibido chorar no ombro de Deus… Mas, sendo um homem reto e temente aDeus, ele persevera no bem e mantém firme sua confiança em Deus:“Senhor, tu és justo e justas são todas as tuas obras; teus caminhossão misericórdia e verdade e és tu que julgas o mundo“ (3,2). Quantasvezes a religião é vista apenas como um meio para obter vantagens, oupara se livrar de toda dor, em vez de ser vivida como um caminhopedagógico através do qual Deus nos leva a amadurecer humanamente,dando-nos a sabedoria da vida… Tornou-se comum transformar a religiãonum conjunto de produtos oferecidos no grande mercado das comodidades,que se vendem e compram para a satisfação de necessidades momentâneas,sem que haja verdadeira relação com Deus. A pressa para obter tudo e apretensão de impor as próprias vontades ao Todo-Poderoso transformaDeus num autômato manipulável pelo capricho do homem… Isso é um “deusex machina”, já não é Deus, nem é verdadeira religião.
A religião é, acima de tudo, um caminho feito com Deus; por isso elatambém requer escolhas, renúncias e coerência moral. Seria falsobuscá-la apenas como um meio para obter vantagens e fugir dossofrimentos a todo custo, mesmo sacrificando valores fundamentais paraa vida. Deus nem sempre se encontra nos caminhos do homem; é este quedeve buscar os caminhos de Deus e por eles andar. Também Tobias desejaa saúde e quer recuperar a visão, mas tem paciência com as “demoras deDeus” e reconhece que Seus caminhos, por misteriosos e difíceis quesejam, são bons e justos. Enquanto isso cresce em humildade e, na suacegueira, vai compreendendo os mistérios de Deus e o significado davida. É bem conhecido como sofrimentos podem ser ocasião deafastamento, ou de aproximação de Deus! Muitas pessoas religiosassofrem profundamente, mas são amigas de Deus e em suas vidastransparece a proximidade do Altíssimo.
O justo e paciente Tobias continua a esperar pelo socorro de Deus etem a certeza de que não será desiludido: “Recordai, Senhor, vossaternura e vossa compaixão, que são eternas. Não se envergonha quem põeem vós sua esperança, mas, sim, quem por um nada nega sua fé” (cf Sl25,4). Suas preces são ouvidas e Deus envia-lhe o anjo Rafael, “médicode Deus”, para que restituir-lhe a visão. Seu conforto é grande e aalegria preenche novamente seus dias, podendo constatar pessoalmenteque Deus é fiel e não abandona quem nele confia: “O Senhor abre osolhos aos cegos e faz erguer-se o caído; o Senhor ama aquele que éjusto” (Sl 146, 8)
Sem saber ainda quem é Rafael, Tobias quer recompensá-logenerosamente, partilhando com ele seus bens, mas acaba aprendendo maisuma lição preciosa: os benefícios de Deus não se pagam, não compram nemse vendem, mas são acolhidos de alma agradecida. Rafael recomenda:“Bendizei a Deus e dai-lhe graças diante de todos os viventes pelosbenefícios que vos concedeu! Diante de todos, manifestai as obras deDeus e não hesiteis em expressar-lhe vosso reconhecimento. Se é bomguardar o segredo do rei, melhor ainda é divulgar as obras de Deus!”(cf 12, 6-7).
Não se fazem negócios com Deus, nem se podem pretender direitosdiante dele em troca de bens materiais. Mas também é verdade: Deus nãose deixa vencer em generosidade e não esquece o bem praticado de bomcoração. Rafael insiste: “continuem bendizendo a Deus pelo bem que lhesfez! Manifestem a todos que Ele é justo! Continuem a fazer o bem, e omal não os atingirá. Melhor é ter pouco, com justiça, do que ter umafortuna, com iniquidade. É valiosa a oração com o jejum e a esmola coma justiça. Melhor é dar esmolas que acumular tesouros. Os que dãoesmolas serão saciados de vida. Aqueles, porém, que cometem o pecado ea injustiça são inimigos de si mesmos” (cf 12,7-10).
Tobias viveu ainda muitos dias felizes, juntamente com sua família;e nunca se arrependeu por ter perseverado na prática do bem, mesmo nomeio das contradições da vida. Seu coração estava repleto de paz. E oanjo Rafael voltou para junto de Deus, pronto para novas missões…