Qual o papel da família na escolha profissional do sujeito na contemporaneidade? Tendo em vista que a pessoa é imersa em um campo de possibilidades presente nas atuais condições de trabalho, refletiremos sobre os legados e lealdades invisíveis que são transmitidos através das gerações.
O modo capitalista deu maior ênfase à escolha profissional, pois antes cada filho persistia na mesma profissão da família, não se preocupando em fazer escolhas que lhe dessem melhor retorno financeiro. Com o advento da industrialização, o trabalho era realizado na rotina de grandes fábricas. O tempo conferido era de longo prazo. Quanto mais tempo um trabalhador permanecesse em seu cargo, melhor ele era considerado. Hoje se percebe que essa dinâmica mudou. Os jovens de classe média, na atual era do capital leve e flutuante, mais do que escolher uma profissão, devem elaborar um projeto de vida e um projeto profissional, que em certa medida deve ser flexível, mas persistente para alcançar os objetivos almejados.
Através da construção de projetos como imperativo na contemporaneidade, a sociedade moderna evoca o futuro, tornando-o quase presente. Dessa maneira questiona-se até que ponto essa evocação gera ou não ansiedade desordenada tanto na família quanto no adolescente, visto que a maioria dos sujeitos faz sua escolha profissional durante essa fase da vida.
Diante disso, criam-se expectativas para o sujeito. Novas dinâmicas são introduzidas na vida das pessoas. A partir do momento em que autonomia e liberdade substituem o poder da tradição, a sociedade contemporânea exige a constante tomada de decisão em todas as dimensões da vida.
Principalmente no que diz respeito às classes médias e altas, a escolha passa por um projeto reflexivo, por um estilo de vida que constroem uma tentativa de justificativa de sua identidade. Por exemplo: o jeito de se vestir, o estilo do cabelo, etc. de determinadas pessoas geram um estereótipo acerca do sujeito e de sua imagética.
Ante às várias reveses de estilo de vida, faz-se necessário um planejamento estratégico da vida. Portanto, elaborar um planejamento para a vida sugere uma forma de olhar e organizar o tempo tanto em relação à preparação para o futuro como à interpretação do passado. A modernidade tardia pressupõe a construção de projetos que são constantemente repensados conforme as transformações e necessidades que possam surgir. Tal flexibilidade é melhor que uma rígida estabilidade, pois esta geraria um mal estar quando o projeto não fosse cumprido, podendo caracterizar até mesmo uma obsessão.
A construção da identidade profissional está ligada à identidade pessoal, pois ambas compreendem todas as identificações feitas pelo indivíduo ao longo da vida em todas as dimensões. Sendo assim, a identidade profissional forma-se através da autopercepção que o indivíduo tem dos papéis profissionais na sociedade, principalmente no que diz respeito às identificações com figuras significativas, como pais, familiares e professores.
Não existe projeto como um fenômeno puramente interno e subjetivo, visto que o indivíduo encontra-se num leque de possibilidades, imerso histórico, social e culturalmente. Ao perceber a dinâmica histórica e sociocultural da escolha profissional e do projeto de vida, entende-se que, de certa maneira, os filhos carregam a responsabilidade pelo sucesso, prestígio e ascensão social da família.
A possibilidade de discordância entre os projetos da família e do indivíduo constitui na família uma rachadura, pois ao mesmo tempo em que parece sem importância, pode levar a casa à ruína. Então, emerge a coexistência de visões diferentes e conflitantes sobre a realidade, que não se complementam dentro da família.
Dessa forma, os pais que constroem projetos para o futuro do filho e que desejam que ele corresponda à imagem sobre ele projetada, são frustrados quando os filhos não correspondem às suas expectativas. Os pais propõem, muitas vezes, objetivos e investem o filho da missão de alcançar sonhos que eles mesmos não puderam realizar em suas próprias trajetórias. Ao filho resta saber-se alvo de uma série de expectativas e a escolha se quer ou não fazer o que os seus pais gostariam que ele fizesse. Ao filho, na verdade, resta o conformismo ou a liberdade de fazer escolhas, mesmo sabendo da gama determinista que o envolve até dentro de sua própria casa.
Pensar sobre o processo de transmissão geracional na família e as lealdades “invisíveis” relacionadas à escolha profissional é construir conhecimento acerca das gerações familiares e de si mesmo. O conceito de transmissão multigeracional objetiva descrever a transmissão dos níveis de diferenciação do sujeito na família, concebendo que o grau de diferenciação de cada membro é resultado de um processo familiar conduzido através das gerações, tanto da família de linhagem do pai quanto da mãe. Nem sempre filho de peixe, peixinho é.
Dessa forma, a família constitui-se como um núcleo de cultura, com costumes e tradições próprios. Cada família tem suas leis que vão sendo herdadas ou até criadas ao longo do ciclo de vida familiar. Chamam-se esses conteúdos de “lealdades invisíveis”, pois perpassam as gerações, muitas vezes, sem serem ditos explicitamente. Dentro dessas lealdades invisíveis também se encontram os segredos familiares que são fatos não descritos, mas sentidos pelos membros da família.
Para entender como a lealdade influencia na escolha profissional, precisa-se tê-la em vista como um crediário a ser pago pelo sujeito. Uma das formas de pagá-lo é acatando a “herança profissional”. Esse fato proporciona ao indivíduo um sentimento de pertencimento e de responsabilidade pela perpetuação da identidade familiar.
Elainy Sales
