Quando a gente busca na oração e na sinceridade, Deus sempre vem em nosso auxílio. Partilho com você minha experiência recente com umesplêndido e misterioso espelho.
Há alguns meses atrás, matutava e rezava sobre o fato de osPadres da Igreja compararem Maria a um Espelho. Estava relendo o livro deRaniero Cantalamessa: “Maria, espelho da Igreja”. Por que espelho?, refletiaeu. O que significa mesmo essa coisa de Maria ser “espelho”? Mais: espelhoperfeitíssimo?
Ao matutar, me vinha o fato de que, na antiguidade, osespelhos eram imprecisos e embaçados, feitos de bronze e bastante caros. Vi-mea imaginar os Padres da Igreja a buscarem uma figura para que Maria fosse melhorentendida, melhor contemplada e, insatisfeitos com os espelhos imprecisos deque dispunham, tentar expressar a Mãe de Deus como, a um tempo, Seu Espelhoperfeitíssimo, sem impurezas e espelho da Igreja, esposa sem ruga e sem manchado Cordeiro.
Por providência divina, vieram a cair em minhas mãos doistextos preciosos sobre o assunto. O primeiro, escrito por um sacerdote, Pe.Jacques Loew, da ordem dos pregadores:
Nessaaltura, é preciso contemplar a humildade de Maria, uma humildade humilde ediscreta, porque somente alguém com tal humildade poderia receber a luzabsoluta sem ser encandeado e sem a guardar para si. Porque Maria não temnenhuma preocupação consigo mesma, sua humildade e sua oração são uma só coisa.A oração de Maria é como um espelho puro que não guarda nada da luz, mas areflete inteiramente. Toda a luz de Deus vem a ela e a penetra, mas ela areflete toda, uma vez que é, segundo a antiga palavra das litanias da Virgem,espelho sem mancha da santidade de Deus.
A humildade!, percebi. É a humildade de Maria, que nãoguarda nada para si, que não tem nenhuma preocupação consigo mesma que a faznão guardar nada da luz, mas refleti-la toda, como um puríssimo espelho. A luzde Deus, diz Pe. Lowen, vem a ela e a penetra, mas ela a reflete toda.
Fiquei a pensar em que espelho da santidade de Deus tenhosido e percebi que nem na idade da pedra poderia haver nada mais opaco, maissem luz, um buraco negro de orgulho, egoísmo e vaidade que nada reflete da luzde Deus. Essa reflexão, juntamente com o pensamento clássico de Santa Teresa deJesus sobre o pano negro do pecado, preencheu-me durante meses, a me dizer oquanto era necessário para mim, para todas as mulheres e homens de hoje olhar oespelho que é Maria para, a um tempo, conhecer a Deus, conhecer-se e encher-seda esperança e misericórdia irradiados por aquele espelho de ternura materna.
Para minha grande surpresa, veio-me às mãos um segundotexto, desta vez não de um religioso ou homem de fé, e sim um cronistaapaixonado por Nietzche mas nem tanto por uma fé confessional: Rubem Alves.
Em uma de suas crônicas, Beleza, ele compara sabiamente osconceitos de “pretty” e “beautiful”, em inglês. Para facilitar, corresponderiam ao nosso“bonito” e “belo”. Diz que “pretty”, “bonito” é uma beleza exterior, efêmera,que tende a desaparecer e pode ser fabricada por cirurgias plásticas. O“beautiful”, por seu lado, pertence às coisas eternas, é uma qualidadeinterior, que nunca aparece à própria pessoa. Veja como, a certa altura, nossocronista, sem se dar conta, descreveu nossa Maria, nosso “Espelho sem Mancha”,nosso “Reflexo perfeito de Deus”:
A beleza (…) não é. Ela aparece e se vai. Ela nãofreqüenta clínicas de beleza. Uma pessoa “é” “pretty” (bonita), mas não “锓beautiful” (bela). Ela é, no máximo, o lugar onde o “beautiful”, a beleza, sedeixa ver. A beleza não é a qualidade do corpo, a música não é o instrumento, operfume não é a flor, as cores do arco-íris não são o prisma.O corpo é apenas olugar onde a beleza se deixa ver. Uma pessoa é bela naquilo que ela não é. É nolugar onde ela não é que o seu corpo deixa ver. O “pretty” é uma pintura. O“beautiful” é um espelho… E não é de admirar que, com freqüência, os espelhossejam “poças de água barrenta” como no desenho de Escher.
Na obra citada, o artista holandês M.C. Escher retrata umapoça de água lamacenta cavada por marcas de pneus, que reflete como em umespelho, o céu azul e pinheiros. Não é impressionante? Rubem Alves, este cronista fenomenal, que nãose declara católico, percebeu, ainda que sem se dar conta, como Maria é espelhoe porque diz: “Olhou para a humildade, olhou para o nada, de sua serva e, deagora em diante, todos me chamarão bem-aventurada”.