Após as eleições do dia 3 de outubro, foram inúmeros os órgãos de informação do país que se perguntaram o que havia acontecida com a candidata Dilma, ao não vencer no primeiro turno um pleito que, para algumas pesquisas de opinião pública, parecia já decidido.
Entre as muitas respostas, uma delas me chamou a atenção: os responsáveis por essa inversão de rota seriam os cristãos. Mas, mais do que com os católicos, eles se identificavam com os evangélicos. Por sua vez, o nó da discórdia era o aborto, cuja descriminalização a candidata teria defendido.
Jornalistas, sociólogos e políticos de todo o país se posicionaram a respeito, reclamando porque dogmas religiosos estavam interferindo nas decisões soberanas de uma nação que, já se cansou de repetir, só pode e dever ser laica: como é possível que, em pleno século XXI, os cristãos queiram impor suas diretrizes a milhões de pessoas que não partilham de suas convicções?
A resposta é muito simples, pelo menos para quem se deixa guiar pelo bom senso. Uma coisa é a religião, que seus adeptos acreditam provir de uma “revelação” divina, e outra é a ética, cuja origem é a lei natural, ou seja, a ordem que brota da natureza e da finalidade das coisas.
Que nenhuma religião possa impor suas crenças à população em geral, todos têm como dado adquirido e pacífico. Assim, ninguém pode ser preso por não acreditar em Deus, até mesmo porque ele deixou as coisas num lusco-fusco tal, que sua existência pode ser simultaneamente entrevista por uns e desconhecida por outros. A mesma coisa vale para a Trindade e a Encarnação e Ressurreição de Jesus, para só citar alguns dos mistérios cristãos.
Coisa muito diferente é a ética, que nasce da própria constituição do ser humano e de sua presença no mundo. Nesse caso, há posições e atitudes que edificam a sua dignidade e outras que a danificam. Uma destas é o aborto: tudo o que prejudica ou violenta a vida é crime. Outra é o homossexualismo e, naturalmente, o “casamento” gay: não é preciso ser especialista em antropologia ou biologia para verificar o que a natureza do relacionamento sexual atesta. Quem se opõe a isso, não o faz porque é cristão, muçulmano ou sem religião, mas simplesmente porque é um ser humano dotado de razão.
Contudo, a luta contra o aborto não passa de hipocrisia se não for acompanhado por igual empenho na luta contra a mortalidade infantil e a pedofilia e na defesa de todos os valores que promovem a vida, como a saúde, a educação, a moradia, o emprego, numa palavra: a justiça social. E a rejeição ao “casamento gay” é inócua se o homem e a mulher não conseguem demonstrar a beleza e a grandeza de um matrimônio onde ambos se enriquecem porque dotados de sexo, sentimentos e mentalidade diferentes e complementares.
Não sei se é porque os católicos, em sua longa história, aprenderam a conviver com as diferenças ou a ficar em cima do muro, alguns estudiosos, em suas análises políticas, preferem investir contra os evangélicos. Essa é a impressão que deu Maria das Dores Campos Machado, em entrevista concedida no dia 7 de outubro: «A pressão de setores religiosos – principalmente evangélicos – sobre uma definição contra o aborto da presidenciável Dilma Rousseff não tem motivação religiosa, mas é uma luta pela conquista do poder». Conceito idêntico foi emitido por Marta Salomon, no dia 8, em artigo aparecido no “Estado de São Paulo”: «Com o ataque à descriminalização do aborto e ao casamento gay como bandeiras, a bancada evangélica aumentou sua participação no Congresso Nacional em quase 50%».
Mas não foram apenas analistas, sociólogos e jornalistas que descobriram a força dos evangélicos na sociedade brasileira. A própria Dilma Rousseff deu a impressão de que era para eles que falava na autodefesa que publicou no dia 15 de outubro: «Dirijo-me a vocês com o carinho e o respeito que merecem os que sonham com um Brasil cada vez mais perto da premissa do Evangelho de desejar ao próximo o que queremos para nós mesmos. Sou pessoalmente contra o aborto e defendo a manutenção da legislação atual sobre o assunto».