Ouvimos falar (e repetimos) muitas vezes sobre qualidade de vida e sobre não desperdiçar a vida, aproveitá-la ao máximo, sobre sentido de vida… mas como empregar bem o tempo dessa vida que me é dada, como descobrir entre tantas possibilidades e oportunidades diárias o que é o melhor, o mais adequado para mim? Somos interpelados a cada momento ao discernimento, a “colocar ordem na própria vida”[1]. Aquele que nos criou e nos conhece melhor que nós mesmos não nos deixou sós nessa tarefa.
“No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado (Cfr. Rom. 2, 14-16). A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser [2]”
Cada pessoa traz dentro de si um órgão de discernimento, um lugar de encontro com Deus, e esse lugar é a consciência [3]. Capaz de abrir-se à luz e à verdade, de perceber o que é essencial, seu papel e vocação tem sido mal entendidos ou mesmo desconhecidos, com o prejuízo do próprio homem, que anda às cegas, sem saber para onde vai.
Numa época que defende o subjetivismo extremo – cada um deve criar a sua verdade – a consciência acaba reduzida à mera opinião pessoal. Cada um teria o direito de fazer o que quiser, o que acreditar ser melhor, como última instância de decisão sobre si mesmo; autonomia total da consciência é reivindicada até a arbitrariedade. Negando-se a existência da verdade ou a possibilidade de descobri-la, se chega à contraposição entre liberdade e lei. Negando a lei natural, escrita por Deus no coração humano, as normas passam a ser vistas como algo externo, que rouba a liberdade de autodeterminação e do qual é necessário se libertar; “instala-se, em alguns casos, uma separação, ou até oposição entre a doutrina do preceito válido em geral e a norma da consciência individual, que decidiria, de fato, em última instância, o bem e o mal”[4], tomando para si o lugar de Deus.
Reivindica-se uma liberdade da verdade e não na verdade. Interessante o diagnóstico feito por S. John Newman, já no séc. XIX: “Quando os homens apelam aos direitos da consciência, não se referem de modo algum aos direitos do Criador, nem ao dever para com Ele da criatura, tanto no pensamento como na ação; mas ao direito de pensar, falar, escrever e agir segundo o próprio juízo ou o seu humor, sem se preocupar minimamente de Deus (…). A consciência tem direitos porque tem deveres; mas, hoje em dia, para grande parte das pessoas, o verdadeiro direito e a liberdade de consciência consistem precisamente em dispensar a consciência, em ignorar o Legislador e o Juiz, em ser independentes de obrigações que não se veem. Passou a ser a liberdade de abraçar uma religião ou nenhuma (…). A consciência é uma conselheira severa, mas neste século foi substituída por um falsário, do qual os dezoito séculos passados nunca tinham ouvido falar ou, se tivessem ouvido, nunca se teriam deixado enganar: é o direito de fazer o que se quer”.[5]
Consideremos o que se entende por consciência. Herrman fala de “dois modos de considerar a consciência: um, como uma espécie de intuição para o que é oportuno, uma tendência que nos recomenda fazer uma coisa ou outra; outro, como o eco da voz de Deus. Ora tudo depende desta distinção – o primeiro modo não é o da fé, o segundo é o da fé”[6]. O então Cardeal Ratzinger acrescenta que “não se pode identificar a consciência do homem com a autoconsciência do eu, com a certeza subjetiva sobre si mesmo e sobre o próprio comportamento moral. Esta certeza pode ser, de uma parte, mero reflexo do ambiente social e das opiniões ali difundidas. De outro lado pode derivar de uma carência de autocrítica, de uma incapacidade de escutar a profundidade do próprio espírito.”[7] Para quem crê, não se trata de uma simples autorreflexão com o objetivo de justificar-se ou de procurar o maior proveito pessoal possível, mas da escuta de um Interlocutor: a verdade existe, é uma Pessoa, e somente ela é capaz de libertar. O homem é capaz de reconhecê-la, se a busca com retidão.
Vivendo na verdade o homem descobre sua dignidade, é liberto da estreiteza do próprio egoísmo. Porque só na verdade pode realizar-se, é dever de cada pessoa procurá-la, com todas as suas energias e capacidades e, tendo-a encontrado, submeter-se a ela: “a norma e a medida do dever não é a utilidade, nem a conveniência, nem a felicidade do maior número de pessoas, nem a razão de Estado, nem a oportunidade, a ordem. A consciência não é um egoísmo clarividente, nem o desejo de ser coerente consigo mesmo, mas sim a mensageira d’Aquele que, quer na natureza quer na graça, nos fala por detrás de um véu e nos instrui e governa por meio dos seus representantes. A consciência é o originário Vigário de Cristo, um profeta nas suas palavras, um soberano na sua peremptoriedade, um sacerdote nas suas bênçãos e anátemas; e, mesmo que o sacerdócio eterno viesse a faltar na Igreja, na consciência permaneceria o princípio sacerdotal”.
Newman lembra que na consciência o homem não ouve só a voz do próprio eu. Ao chamá-la de “originário Vigário de Cristo” lembra de seu caráter dialógico, do pôr-se diante de um Outro, que indica o que é o bem; a consciência “é orientada à obediência e remete para Alguém fora de nós próprios: Deus – para o nosso bem e para o bem dos outros”.[8]
Essa obediência à Verdade reconhecida protege o homem de ser arrastado pelos próprios desejos, por aquilo que traria aparentes vantagens ou mesmo da necessidade de corresponder expectativas externas para adaptar-se a um grupo. Como lembra Ratzinger quando era ainda Cardeal, “o indivíduo não pode pagar o seu progresso, o seu bem-estar com o preço da traição de uma verdade conhecida”[9].
Façamos um passo importante, o da necessidade da formação da consciência. Para ser guia do agir, essa precisa ser segura, reta e não errônea; por isso mesmo, não pode ser abandonada a si mesma, mas deve ser instruída, guiada, como advertiu Paulo VI: “A sua voz nem sempre é infalível ou objetivamente suprema. E isto é especialmente verdadeiro no campo da ação sobrenatural, onde a razão por si só não consegue interpretar o caminho do bem, e deve recorrer à fé para ditar ao homem a norma de justiça desejada por Deus através da revelação (…) Para andar em linha reta, quando se vai à noite, isto é, se prossegue no mistério da vida cristã, não se precisa apenas dos olhos, precisa da lâmpada, precisa da luz. E este lumen Christi não deforma, não mortifica, não contradiz a de nossa consciência, mas a ilumina e a capacita a seguir Cristo, no caminho certo de nossa peregrinação rumo à visão eterna.”[10] E como formar a consciência? Pela luz do Verbo: através da meditação da Palavra de Deus e da oração; do cultivo da vida interior e do silêncio, que favorece a escuta; do Magistério da Igreja vem em socorro, auxiliando na correta interpretação da Palavra. Por todos esses meios que nos foram colocados à disposição, somos responsáveis pela consciência que temos: se é errônea, ou se pelas seguidas más escolhas se torna relaxada, obscurecida. Escolhemos a consciência que temos e ao mesmo tempo somos consequência dessa escolha.
Se poderia objetar se as exigências da verdade, do Evangelho não seriam pesadas demais, adequadas aos heróis da fé, mas não aos cristãos comuns. Há mesmo quem defenda o desconhecimento do que é correto, por que, não sabendo o que deve ser feito, não se é responsável por fazê-lo… como que nivelando por baixo, escolhendo sempre o mínimo necessário (e muitas vezes sequer isso), escolhendo a mediocridade ou a permanência no erro, se desconsidera a vocação do homem de crescer em graça até a estatura de Cristo[11], à santidade: “O humanum filial, precisamente em virtude de sua estrutura filial, é capaz de se inserir na lógica filial do Filho. A verdade de Deus não aparece então em contradição com o ser do homem; a consciência do homem filial é capaz de viver em uma relação de obediência à verdade de forma dialógica, e não de conflito dialético. Na abertura à verdade que vem de ser um dom, a consciência do filho se compromete a viver uma vida que esteja em harmonia com a verdade filial que o precede e que ele faz sua em sua interioridade filial. É precisamente ali onde a consciência moderna perde seu caráter filial que o homem não pode mais pensar em sua relação com a verdade de uma maneira acolhedora.[12]”
Não se trata de legalismo frio ou de alimentar escrúpulos, mas de um organismo espiritual a ser desenvolvido, do desenvolvimento das possibilidades mais altas da pessoa, de uma relação a ser cultivada até que se chegue à união com Deus. Isso justifica e torna necessária a missão e o anúncio do Evangelho: o homem aguarda ser iluminado pela luz de Cristo, ser revelado a si mesmo. Como observa Maceri, “há uma ligação entre Cristo e a consciência, e isto não diz respeito apenas ao cristão. No nível da experiência humana existe um ‘núcleo incoativo’ da consciência cristã, uma semente que, para se desenvolver, deve entrar em uma relação explícita com o Mistério Pascal de Cristo. A consciência de cada pessoa está intimamente unida a Cristo, seu vigário original[13]”
Ao receber a boa nova do Evangelho, o homem descobre não ser fruto de um acaso, mas do amor infinito do Pai que o criou, adotou e redimiu no Filho; não foi abandonado às próprias forças, mas conta com a potência do Espírito, o auxílio da graça que torna possível uma vida plena já aqui, mas que também se abre aos horizontes da eternidade. O homem reconhece o que desde sempre desejara. Acolhendo o anúncio, é convidado a entrar na dinâmica do dom e, por sua vez, ofertar de graça e por amor o que gratuitamente recebeu: “a antropologia filial é a expressão da antropologia do dom que está enraizada em uma visão do homem, concebida como um ser de dom, por dom e para dom. Nesta visão, o dom precede o dever. Pode-se dizer que o pacto de amor se torna então o contexto original para interpretar a consciência psicológica, mas também moral, do homem. (…) No plano ontológico isto significa ‘sim à finitude no sim à transcendência[14], conceber a liberdade do homem em chave filial, uma liberdade que vive sob a forma de gratidão’. Implica compreender a obediência como um ‘receber’ e também a autoridade como um ‘não reter’[15]”. Justamente por receber a vida da graça como dom, pode corresponder e deixar-se guiar por esse doce hóspede da alma, tornando-se luz para o mundo.
A consciência do filho é a consciência do homem novo[16], recriado na cruz e ressureição do Filho. “A lógica da cruz também assume uma função purificadora da consciência: ‘ela examina o conteúdo da consciência: refina-os, modifica-os, estrutura-os de acordo com uma nova figura’. É à luz da cruz que a consciência compreende quão errada é uma autodeterminação concebida sem abertura para a verdade, para o outro, para o Outro que se entregou totalmente. A cruz muda a maneira de sentir e apreciar a consciência filial crente no sentido de correção, refinamento e enriquecimento. Em última análise, deve ser enfatizado que conceber a consciência na forma da Cruz significa viver a vida de acordo com a mesma radicalidade da pró-existência do Filho de Deus, uma consciência que se manifesta como disponibilidade incondicional ao outro, a ponto de morrer pelo outro. Neste sentido, a sequela crucis é o cumprimento da sequela Christi.”[17] Impossível não nos recordarmos dos mártires, que tendo descoberto que a amizade com Deus, a sua graça é mais preciosa que a vida,[18] preferiram perdê-la (ou melhor, ofertá-la) a perder o tesouro que encontraram.
O martírio é sempre testemunho da verdade. Entre tantos, lembro-me de S. Thomas Moore, primeiro ministro do rei Henrique VIII, que por defender a verdade do matrimônio é acusado de traição ao rei condenado à morte. O contexto não é favorável, já que, à exceção de John Fischer, mesmo os bispos e padres assinam o documento solicitado pelo rei, renegando a fé e rompendo com a Igreja. Sobre esse episódio, Moore escreve que “a Fortaleza (a Igreja) foi traída exatamente por quem deveria defendê-la[19]”. Nem a solidão, nem as vantagens oferecidas pelo rei caso renegasse sua consciência, nem o amor de sua família puderam convencê-lo a voltar atrás e prestar juramento ao rei. Pouco antes de ser decapitado, declara: “morro como bom servidor do rei, mas de Deus primeiro.”
O tempo de hoje precisa de testemunhas dessa envergadura, de homens e mulheres que conhecendo, se apaixonem pela verdade, a abracem em todas as circunstâncias e desafios da vida e não a guardem para si, num intimismo infrutífero, mas a comuniquem. Como nos lembra Ratzinger, “temos o dever a tarefa de trazer a sociedade de volta aos valores morais eternos, ou seja: a tarefa de desenvolver novamente no coração das pessoas a audição quase monótona para ouvir os sussurros de Deus. O erro, a ‘consciência errônea’, só é confortável à primeira vista. Na verdade, se não se reage, a mutação da consciência leva à desumanização do mundo e a um perigo mortal”[20].
Andreza Henriqueta dos Santos Alves
Graduada em Teologia pela Faculdade de Teologia de Lugano (Suíça)
Responsável pela missão de Paderborn (Alemanha)
Referências bibliográficas
[1] HERNANDEZ,J. P. Discernere è creare. Dicastero per i laici, la famiglia e la vita. In: www.laityfamilylife.va
[2] PAULO VI. Gaudium et Spes, 1. Compêndio do Vaticano II: Constituições, decretos, declarações. Ed. Vozes, 31° ed.
[3] “O homem ouve e reconhece os ditames da lei divina por meio da consciência, que ele deve seguir fielmente em toda a sua atividade, para chegar ao seu fim, que é Deus.” PAULO VI. Dignitatis humanae, 3. Compêndio do Vaticano II: Constituições, decretos, declarações. Ed. Vozes, 31° ed.
[4] JOAO PAULO II. Carta Encíclica Veritatis Splendor, 56.Paulinas, 1993.
[5] NEWMAN ,J.H., Carta al Duque de Norfolk. Traducción y notas de V. GARCIA RUIZ und J. MORALES MARIN, Ediciones Rialp, Madrid 1996, 142s.
[6] HERMANN G.Beato Cardeal Newman, doutor da consciência. L’Osservatore Romano, ed. port., 24-IX-2011.
[7] RATZINGER, J. Elogio della coscienza: il brindisi del Cardinale. Il Sabato, 16-III-1991.
[8] NEWMAN ,J.H., Carta al Duque de Norfolk. Traducción y notas de V. GARCIA RUIZ und J. MORALES MARIN, Ediciones Rialp, Madrid 1996, 142s.
[9] RATZINGER, J. Elogio della coscienza: il brindisi del Cardinale. Il Sabato, 16-III-1991
[10] PAULO VI. UDIENZA GENERALE:La sapienza del Signore sempre illumini le coscienze, 12 –II-1969
[11] Ef 4,13
[12] JERUMANIS, A. M. Con Cristo, per Cristo, in Cristo. Edizioni Camiliane, 2013, 795 p.
[13] MACERI, La coscienza morale filiale. In: in Réal Tremblay – Stefano Zamboni (a cura di), Figli nel Figlio. Una teologia morale fondamentale , EDB, Bologna 2016, 225-248.
[14] Acolhendo seu limite de criatura, se abre a transcendencia
[15] JERUMANIS, A. M. Con Cristo, per Cristo, in Cristo. Edizioni Camiliane, 2013, 795 p.
[16] 2 Cor 5,17
[17] JERUMANIS, A. M. Con Cristo, per Cristo, in Cristo. Edizioni Camiliane, 2013, 795 p.
[18] Sl 62,4
[19] MORE, T. A sós, com Deus: escritos da prisão. Ed. Quadrante, 2° ed, 2017.
[20] RATZINGER, J. Elogio della coscienza: il brindisi del Cardinale. Il Sabato, 16-III-1991.
Sobre o Instituto Parresia
Siga o perfil no Instagram
Conheça a nossa Plataforma de Cursos Online no Site
Ouça os Podcasts no Spotify
Assista aulas gratuitamente no Youtube
Entre em nosso canal do Telegram
E-mail: institutoparresia@comshalom.org