Quando pensei neste percurso, imaginei estar em diálogo com Agostinho, mas não em uma conversa distraída ou com ânsias por adquirir informações a respeito, mas a partir de um olhar verdadeiramente contemplativo de sua personalidade, de sua alma, acompanhado de um debruçar-se sobre a minha própria alma, buscando encontrar semelhanças. Em paralelo a este mergulho interior, lancemo-nos para o Alto, onde está Deus, o misericordioso, que o cumulou tanto, e o mesmo deseja fazer conosco. Neste terceiro livro procuraremos extrair o que de mais significativo pode nos influenciar.
Aqui estamos a conhecer um estudante que nos primeiros parágrafos afirma desejar certo risco, indicando assim certas características de sua personalidade. Não era pessoa dada a busca excessiva por seguranças. Em outro parágrafo, mais adiante, quando aponta suas inconsistências, afirma que, ainda que estivesse se enlameado na maldade, no erro, não era dado a ir até as últimas consequências. Tinha alguma régua moral que lhe dizia: “ok, vai fundo, mas não após certo limite”.
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Dado aos amores sensuais e às paixões libidinosas, reconhece que os prazeres manchavam a virtude da amizade. Por certo, a entrega às seduções, tornavam-no cada vez mais ávido por prazeres, o que gerava o egoísmo, tornando a gratuidade provinda da amizade, algo desinteressante. O autor olha para si, em idade madura na fé, retratando a relação entre eros e philia.
Busca pela sabedoria
O teatro alimenta a sede de sensações. Interessante observar que a plateia, quando se apresenta para um drama ou uma tragédia, por exemplo, se entusiasma por ter apreendido sentimentos de tristeza e pesar após as apresentações. Ele brinca com o paradoxo de que a satisfação teria de estar necessariamente em certa tristeza, ao passo que se não a sentisse, sairia decepcionado do espetáculo. Emenda com comentários sobre a compaixão e o prazer. Como um homem sente um gozo pela tragédia alheia sem o mínimo sentimento de compaixão ainda que se fosse em algo fictício? A amizade faz uma pessoa compadecer-se de outra e sentir prazer, não da dor alheia, mas na ajuda que lhe presta ao mitigar suas penas.
Ressalta que ficou encantado com a leitura da obra Hortênsio, de Cícero. Admirou-se do conteúdo, não da forma. Aqui ele sente que era a providência divina o iria conduzir à verdade. Ele se admirou do conteúdo, uma exortação à filosofia – amor à sabedoria. Afirma que ali, aos 19 anos, “começava a levantar-me e voltar-me para Ti”, citando o versículo da parábola do filho pródigo.
“Como eu ardia, ó meu Deus, em desejos de voar para ti, abandonando as coisas terrenas! No entanto, eu ainda não sabia o que pretendias fazer de mim! Em ti reside a sabedoria. Ora, o amor da sabedoria, pelo qual eu me apaixonava com esses estudos, tem o nome grego de filosofia”.
Adiante nesta busca, resolveu ir às Sagradas Escrituras, mas o que lá encontrou neste primeiro momento? O que lá constatou?
“O que senti nesta época, diante das Escrituras, foi bem diferente do que agora afirmo. Tive a impressão de estar diante de uma obra indigna de ser comparada à majestade de Cícero”. Ele diz que seu orgulho não podia suportar aquela simplicidade. A soberba do jovem africano se apresenta uma vez mais, buscava a sabedoria, mas ainda uma sabedoria humana; quando diante da sabedoria divina, desdenhou-a. É certo que a Bíblia diz que Deus resiste aos soberbos, que o reino dos céus é adequado àqueles que se apresentam como crianças e até Jesus diz que falava em parábolas para que “ouvindo, não compreendam; vendo, não enxerguem e assim eu não os possa curar”. Jesus ainda critica os que tem o coração embotado. Este era o Agostinho no auge de sua juventude.
Mal versus Bem
Passando por Cícero e pelas letras sagradas, chega até a seita dos maniqueus, que era uma seita “gnóstica-cristã” que tinha alguns elementos particularmente estranhos e esquisitos em detrimento da sã doutrina cristã. O que ele estava aprendendo? Que o Bem e o Mal se equivaliam num dualismo radical; na trindade há uma certa hierarquia onde o Pai é superior ao Filho. Impregnada de panteísmo, considerava que cada matéria continha uma partícula da substância divina.
Além disso, acreditavam que os vegetais tinham alma sensitiva. Um figo retirado da figueira causaria dor na planta. Um sacerdote, eleito entre os maniqueus, ao ingerir a fruta, liberaria partículas divinas ali presentes senão pela mastigação, ao menos por meio de orações e ritos simultâneos à digestão. Lá na frente encontrou incoerências e discordou particularmente do fato de apresentarem entidades como sol, lua e estrelas com status de divindade. Para Agostinho, os seres espirituais são superiores aos demais entes sensíveis e o próprio sol, ente presente na realidade, mereceria mais consideração do que a projeção transcendente que se fazia dele.
Outro ponto é que o mal, sendo privação do bem, não poderia estar em pé de igualdade com seu oposto. A ausência de algo não é equivalente ao bem ausente. O bem é evidentemente superior à sua ausência. Estas e outras questões fizeram-no abandonar o maniqueísmo, repleto de dualismo e panteísmo. Para os maniqueus, o Antigo Testamento era o escrito do “Deus mau” enquanto o Novo era o escrito do “Deus bom”, desconsiderando totalmente a pedagogia da justiça que vai se descortinando da lei antiga à lei nova.
A moral em Santo Agostinho
Os fundamentos da moral estão inscritos no coração do homem e tem sua fonte em Deus e revelam-se na lei natural. Cita o primeiro mandamento e indaga-se quando e aonde tal preceito seria anacrônico. Por certo há normas prescritas que com o passar do tempo precisam ser atualizadas para evidenciar um princípio, um fundamento que é passível de atualização. Mas afirma que há atos imorais que, ainda todos cometessem, não os tornaria lícitos; por outro lado, há atos virtuosos que, ainda que ninguém os praticasse, continuariam sendo virtuosos.
Há leis naturais contra as quais o comportamento não poderá alterá-las. Ao citar o pecado dos sodomitas que se entregavam às paixões contrárias à natureza, ferindo a si próprios e ofendendo a Deus. Há ainda conciliações e confabulações entre os homens que, embora sejam possíveis e nelas os homens venham a alegrar-se, tornam-os culpáveis por romperem a barreira da sociedade humana.
Difícil é julgar os homens, pois há atos reprováveis e passíveis de julgamento e um homem sendo advertido pode vir a se corrigir. Mas há atos que em si não causam mal diretamente ao próximo ou desonram Deus, mas que não é de fácil apreciação: em um negócio lícito, alguém adquiriu um bem por necessidade ou cobiça? No trato de uma autoridade com um seu subalterno, tal autoridade exerceu o rigor a ponto de corrigi-lo na medida justa ou foi desproporcional e ainda por cima chegou a alegrar-se com o desgosto alheio?
O sonho da mãe
Por fim há o belíssimo episódio do sonho de sua mãe, a piedosa Santa Mônica, que via ela e ao seu lado, seu filho, sobre uma régua de madeira e, vindo ao encontro deles um jovem bastante luminoso. Ela acordou e imaginou ser Jesus vindo ao encontro do seu filho. Quando ela explicou, após ele tê-la consolado, o sonho, ele, usando da astúcia e desdenhando dela, assim interpretou: “no sonho tu virias a mim e seria como eu, mãe”. Ela, porém, emendou dizendo: “‘não’ tu é e que estavas próximo a mim e se assemelhava a mim.”
Mônica não desistia de rezar e buscar a conversão de seu filho. Foi a Santo Ambrósio, pedindo-lhe que marcasse um aconselhamento para advertir-lhe de seus erros e enganos. Ao encontra-lo, o Bispo afirmou que não adiantariam conselhos, que o jovem iria emendar-se um dia pela via dos estudos. O maniqueísmo iria ser descoberto como uma contradição.
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Enquanto isso, Mônica insistia, pois sabia que o bispo era letrado e sábio. Ele julgou infrutuoso e lhe objetou uma segunda vez, afirmando ter estado nesta seita que era bem difundida, à época. Ele mesmo encontrou a verdade por si só, não adiantando os que argumentavam em contrário e disse a mãe, que ele encontraria o erro desta doutrina. Ela não se fez de rogada e insistia ainda mais. O Bispo, sem argumentos, finalizou o diálogo, emendando a famosa frase que ecoa até hoje nos círculos católicos: “Vá e viva em paz, pois é impossível que possa perecer um filho de tantas lágrimas”.
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Delcy Pereira Carvalho Filho
Graduando em Filosofia – Academia Atlântico