Formação

Santo Agostinho entre dois mundos: a fé católica e o maniqueísmo

“A busca por Deus se iniciou por meio da razão até que a fé lhe viesse a descortinar a revelação divina”, afirma Delcy Carvalho em mais um resumo do livro “Confissões” de Santo Agostinho.

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FOTO: CATHOPIC

No livro V, Agostinho relata o período em que foi morar na Itália, embora conste passagens de eventos ocorridos em Cartago. Em suma, o que ele relata neste bloco é o seguinte: o louvor ao Deus Misericordioso e Consolador; a partida e chegada a Roma, o comportamento dos estudantes romanos; o encontro com Fausto, bispo Maniqueu, a confrontação do maniqueísmo com o ceticismo e com as Sagradas Escrituras e, por fim, o encontro com Santo Ambrósio, bispo de Milão, e o salto para o catolicismo.

Inicia louvando ao Deus que buscamos, ainda que não saibamos, quando nos voltamos para as criaturas. O cume desta procura se encerrará no seu belo poema “Tarde te amei” no livro X, que é o ápice das Confissões. Afirma que a jornada do homem distante de Deus é a de um andarilho errante, desorientado em função do distanciamento do seu Criador. As penas que pagamos por este afastamento são, de certa forma, um meio para nos humilharmos e chorarmos diante Dele para findar esta jornada angustiante longe de sua presença.

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Experiências em Roma

O que fez Agostinho em dirigir-se à Cidade Eterna? Certamente lá havia maiores possibilidade de lucro como professor de retórica, e sabia disso, mas foi pra lá informado de que os alunos eram bem mais disciplinados que os de Cartago, de sorte que lá pudesse exercer com maior excelência seu magistério. Era já a Divina Providência dirigindo os destinos do professor. Sua partida, contudo, foi inusitada: mentiu para a mãe, dizendo que iria apenas acompanhar um amigo numa viagem. Mais um sofrimento para Santa Mônica que a esta altura só sabia chorar. Agostinho dizia que as lágrimas dela regavam a terra cotidianamente diante de Deus. Mônica, coitada, ficou “a ver navios” com a partida do filho.

Em Roma, entrega-se aos desatinos, chegando a afirmar ter cometido os mais graves pecados contra Deus, contra o próximo e contra si mesmo. Chegou a ser acometido de dores físicas, provavelmente uma enfermidade. Enquanto isso relata que sua mãe piedosa, continuava rezando por ele de maneira a não apresentar tagarelices, mas verdadeiro sacrifício espiritual agradável a Deus.

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No ensino da retórica prosperava e se empenhava com zelo cada vez mais ardente, demonstrando toda a sua competência, amealhando discípulos que se reuniam com ele em sua casa, como faziam os grandes mestres da Antiguidade. Chamou-lhe atenção o comportamento dos alunos romanos que, se por um lado demonstravam empenho por aprender, por outro lado o decepcionaram, dando prejuízos financeiros por inadimplência. Não eram desordeiros como os de Cartago, mas havia “caloteiros” entre eles.

Desilusões em Cartago

Deixando de lado a vida profissional, sua trajetória prosseguia na seita maniqueísta. Ele espera ansiosamente por um famoso Bispo chamado Fausto, a quem veio encontrar aos 29 anos de idade. Aguardou-o ardentemente e ao encontrá-lo, de cara, percebeu a eloquência da qual grande fama lhe rendera. Agostinho sabia degustar um alimento de qualidade, independentemente de quem o servisse. Apesar da habilidade do expositor, encontrou fantasias ilusórias no discurso além de divergências em cálculos referentes a realidades do mundo natural, explicitados por adeptos da seita, como por exemplo: os solstícios, os equinócios e os eclipses, dentre outros. Agostinho afirma que é feliz quem conhece a Deus, o Deus verdadeiro, ainda que ignore vários aspectos da realidade natural.

O fundador do maniqueísmo – chamado Manes, Mani ou Maniqueu – profeta persa também havia apresentado argumentos falaciosos, errando sobre pontos referentes aos astros, movimento do sol, da lua e ainda tendo o disparate de se apresentar com autoridade de uma pessoa divina. Se errava nestes pontos, quanto mais não erraria acerca de questões mais profundas? Não estaria, ele, sujeito ainda a maiores enganos? Tudo isso o professor de retórica ia meditando em seu coração.

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O maniqueísmo ia desiludindo-o progressivamente, enquanto o autor encontrava melhores fundamentos em outras filosofias. Este descontentamento apresentava-se também em outros aspectos: segundo a seita, o homem não respondia por seu próprio pecado, sendo-lhe negada a responsabilidade consequente de seu livre-arbítrio. Quando alguém pecava, atribuía-se a culpa a uma espécie de substância que habitava no homem, semelhante a um parasita que, para agir, precisa de um hospedeiro. Agostinho encontra-se intrigado, tendo chegado às fronteiras do ceticismo – corrente filosófica que afirma não ser possível alcançar a verdade, melhor mesmo é suspender o juízo.

O mal se apresentava de duas formas: como este agente interior que leva o homem a pecar e também como uma substância, um sujeito e não como uma privação, ausência, deficiência ou corrupção parcial de tudo o que é bom, da bondade presente na criação. Isso reforçava ainda mais a “doutrina da irresponsabilidade.” É aí que ele se perguntava: o que era o mal? Um espírito maligno em forma de ar? Vale lembrar ainda que para os maniqueus, bem e mal eram equivalentes.

Encontros e avanços na fé

Relata em outra parte ter encontrado certo Elpídio, ainda em Cartago, orador que discutia com os maniqueus, utilizando-se de argumentos embasados nas sagradas escrituras. Os debates ocorriam em público, lembrando as disputas nos areópagos gregos. Agostinho observava que os membros da seita que ele frequentava nunca o contradiziam em público, mas apenas faziam comentários às escondidas.

Voltando a Roma, Agostinho presta concurso público. Como funcionava naquela época as admissões? O prefeito de Roma, chamado Siríaco, fez uma arguição onde o professor tinha que apresentar seus argumentos. Agostinho, então, obtendo êxito, ganhou a vaga para ensinar retórica na cidade de Milão, onde Santo Ambrósio era o bispo.

Por providência, encontra-se com o bispo e, logo de cara, fica impactado por sua gentileza e pelo espírito moderado com que discursava. Encontrou acolhimento paterno e já, previamente, sabia da fama que ele gozava. Quanto aos discursos, era menos eloquente quanto à forma em relação a Fausto, mas em conteúdo era incomparavelmente melhor, ensinava a sã doutrina com maestria.

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Agostinho afirma que mesmo não se esforçando por reter todo o conteúdo, as palavras iam penetrando-lhe suavemente o espírito. Percebeu o quanto a fé católica era defensável e se viu no seguinte dilema de estar transitando entre “dois mundos”: um maniqueísmo vivido de maneira questionadora e sua experiência principiante com a fé católica.

O ponto central que ele cita para dar o salto definitivo em direção ao cristianismo era a necessidade de encontrar a realidade espiritual, precisava descobrir se havia uma substância espiritual que contradissesse o materialismo Maniqueu, que dava prevalência às realidades corpóreas. A partir de então, avançando nos fundamentos do cristianismo, veio a tornar-se catecúmeno da Igreja Católica, abandonando a seita que em tal momento já compreendia inferior até a outras correntes filosóficas. A busca por Deus se iniciou por meio da razão até que a fé lhe viesse a descortinar a revelação divina. Interessante e belíssimo percurso! 

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Por Delcy Carvalho


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