Formação

A busca pelo prazer de Santo Agostinho

Neste sexto resumo de Confissões, Delcy Carvalho revela os desafios do homem maduro: Agostinho de Hipona, em viver a castidade e converter-se ao Cristianismo.

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FOTO: CATHOPIC

No sexto livro de Confissões “Agostinho aos 30 anos”, encontramos mais alguns elementos da figura de sua mãe, Santa Mônica, Santo Ambrósio, os amigos Alípio e Nebrídio. Dentre os temas presentes, encontramos: a ambição, as dificuldades quanto à castidade – escravidão do prazer, espetáculos sangrentos, noivado e matrimônio de Santo Agostinho.

Estamos na idade madura da vida do autor. Para perscrutarmos a alma de Santo Agostinho, é necessário conhecermos seus contatos mais íntimos, que ele vai revelando ao longo da obra: sua mãe, seus amigos e seu pai na fé, o Bispo de Milão. Ainda na descoberta da fé católica, vai paulatinamente retratando seu percurso, ora avançando, ora titubeando em sua jornada.

Sua mãe vai ao seu encontro em Milão, viajando de barco, passando por tormentas, demonstrando a força de sua personalidade e o testemunho de sua fé. Enquanto viajantes e timoratos temem os revezes, não falta da parte de Mônica o estímulo para que cheguem seguros ao final da viagem, garantindo-lhes que tudo correria bem.

Ao encontrar seu filho e vendo aos poucos abandonar o erro, em uma fé católica ainda em caminho, não fica logo entusiasmada com isso, porquanto almejava ardentemente ver em Agostinho um autêntico fiel de Cristo. Outro traço marcante dela era a grande docilidade às orientações pastorais de Santo Ambrósio, que estava mudando costumes católicos acerca da veneração dos santos mártires e da maneira correta de honrar os fiéis defuntos.

Agostinho passa a frequentar a “escola de Ambrósio”, ou seja, determina-se a ir às liturgias dominicais, ansioso por encontrar respostas acerca de pontos obscuros da fé católica. Só se lamenta que o Bispo, muito assediado, nem sempre está disponível para esclarecer-lhe. 

Fé e Razão 

Uma passagem decisiva do pensamento maniqueísta ao entendimento da fé cristã se dá a partir do seguinte versículo bíblico: “Deus criou o homem à sua imagem.” (Gn 1, 27). Para os maniqueus, só existia substância corpórea. Agostinho tem extrema dificuldade em conceber uma substância espiritual, mas já percebia que, diferentemente da seita que seguia, não conseguia imaginar um Deus em formato corpóreo humano. Apesar disso, recorda, então, do tempo em que zombava dos católicos quando bradava contra essa imagem divina que não tinha forma. Agostinho está a caminho da verdade, saindo de uma imagem “corpórea” de Deus, percebendo-o presente em tudo, mas ao mesmo tempo ausente.

O livro é uma obra prima sobre fé e razão. Em paralelo às reflexões sobre a doutrina católica, passa a fazer uma meditação acerca do que seja a fé. Traça um paralelo entre ela e as realidades apontadas pela ciência. Segundo Agostinho, as ciências humanas, e aqui estamos falando de um homem de elevada cultura e dotado de amplo conhecimento, podem levar a equívocos. Em que sentido? As ciências podem apontar algumas certezas, mas que, em certas realidades não passam de fábulas, pedindo assentimento sem qualquer demonstrabilidade (no livro ele não dá exemplo concreto).

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Quanto à fé, apresenta, de maneira muito simples, certezas consistentes para as quais as demonstrações são absolutamente desnecessárias. São realidades acreditadas por nós, afirma o autor, desejando explicar uma noção primária, básica do que seja a fé. Aí ele exemplifica: ainda que não tenhamos visto ou sido testemunhas oculares de certas realidades, acreditamos no que dizem alguns amigos, tomamos por certas as orientações médicas e não duvidamos em nada da identidade de nossos pais ou da existência de certos lugares, nunca antes visitados. Emenda após este argumento, acerca da autoridade dos livros divinos, afirmando que ela se esconde aos de espírito leviano e se revela aos demais.

A busca desordenada pelo prazer

Metido na ambição, nos desejos desordenados e nas paixões, Agostinho buscava fama, honras, riqueza, um bom matrimônio, mas em nada encontrava consolação. Nutria um espírito inquieto e afastado do Bem, que ordena harmoniosamente todas as aspirações humanas. Certo dia, encontrando um mendigo na rua a deleitar-se no álcool, admirou-se de sua imensa satisfação, enquanto refletia sobre qual vida era a mais feliz: a dele ou a do ébrio homem.

Ele sabia que a alegria do bêbado não era a verdadeira, mas passada a embriaguez, estava cessada a falsa alegria, enquanto que ele encontrava-se imerso em alegrias fundadas em coisas vãs, não em Deus, mergulhando assim numa inquietação perene. A alegria que o mendigo procurava no vinho, parecia ser mais genuína do que a sua, que a buscava na vanglória, estando ele devorado por preocupações. Pobre e ansioso Agostinho!

Passemos ao tema da amizade. Aqui encontramos dois amigos: Alípio e Nebrídio. O primeiro é citado como um discípulo seu de retórica, que chegou a ser muito bem sucedido na atividade jurídica. Enfrentou pressões para corromper-se, foi acossado por um influente e poderoso senador romano, mas, por virtude, não cedeu ao laço do engano, nem pendeu para o favorecimento ilícito. 

Este jovem estudante de retorica e advogado, viria a ser Bispo de Tagaste, cidade natal de agostinho, situada hoje onde é a Argélia. Um dia, viria também a tornar-se santo da Igreja Católica. Agostinho relata ainda alguns traços do amigo: foi adepto de espetáculos circenses, lutas sangrentas, sendo, contudo, bem mais moderado que o professor na virtude da castidade. De Alípio, narra ainda o pitoresco episódio de sua prisão, por engano, quando foi confundido com um ladrão, o que levou Agostinho a afirmar, a partir do fato: não devemos julgar precipitadamente as pessoas!

De Nebrídio, cita apenas que deixou a rica propriedade do pai e a companhia da mãe para segui-lo, vindo a morar juntos, para buscarem apaixonadamente a verdade e a sabedoria. Assim conclui acerca dos amigos: “éramos como três famintos que desabafam entre si a própria miséria e que esperam de ti ‘o alimento em tempo oportuno.’” 

“Tarde te encontrei”

O tema da felicidade bate à porta do coração de Agostinho em diversas ocasiões. A palavra eudaimonia era o como os filósofos gregos a chamavam. Um homem inquieto, com coração fervente de paixões, sedento pela verdade, vai de um lado para o outro: da sede pela felicidade e pela verdade, renunciando a tudo à aspiração dos bens materiais, do sucesso profissional. Os últimos também são bens temporais importantes? O que fazer? Renunciar a tudo? E se não renunciando o homem viesse a decair um degrau no patamar da vida feliz? A vida do homem é uma luta! Em paralelo a estes embates interiores, afirmava adiar sempre, ao máximo que podia, a própria conversão, o que poderia livrá-lo desse turbilhão. Ele afirma categoricamente: “enquanto assim pensava, e os ventos contrários assim se aproximavam e me impeliam o coração de um lado para o outro, o tempo passava, e eu tardava em converter-me ao Senhor.” (Confissões, IV, 20)

Deixou uma mulher com quem vivia há tempos, que foi para a África, tendo encontrado a Deus. Agostinho iria casar-se com uma outra que ainda não tinha atingido a idade núbil, que era de 12 anos, naquela época. Neste interim não aguentou os 2 anos de espera. Logo arrumou outra para saciar a avidez de suas paixões. Sua mãe, Mônica, esperançosa no matrimônio, imaginava que aí, juntamente com o batismo, poderia significar o início de uma vida nova após a regeneração por meio do banho purificador do sacramento.

Ainda sobre esta dimensão da impureza, ele retrata sem escrúpulos no seguinte parágrafo: “escravo da carne, arrastava minhas cadeias com mortal volúpia, temendo que se quebrassem, e repelia, como se viesse a tocar-me na chaga, a mão de quem queria libertar-me, dando-me bons conselhos.” (Confissões, IV, 21)

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Discorre ainda neste livro sobre um projeto de vida comum com seus amigos, amantes da sabedoria. Parecia desejar formar um “condomínio” (segundo os padrões de hoje) com pessoas afins que pudessem, juntas, em comunidade, dedicar-se aos estudos num ousado empreendimento. Iriam partilhar os bens e tinha até uma espécie de “síndico”. Esta ideia ficou só no papel!

Por fim, encerra o livro com o tema do Sumo Bem e do Sumo Mal. Escravo do prazer, considerava Epicuro ser o paradigma de alguém triunfante, caso não houvesse vida após a morte, nem julgamento póstumo do homem por seus atos morais. Indaga-se: não estaria no prazer corporal o âmago da felicidade? Logo em seguida reflete sobre outros prazeres desinteressados como a amizade, a possibilidade de discutir questões afins com quem se quer bem. Reflete sobre o prazer egoísta e o prazer altruísta. Afirma que para o homem é temerário afastar-se de Deus, que nos liberta dos erros e longe do qual não se pode imaginar algo melhor. Conclui com um sentimento de que todo homem errante, pode ser conduzido para um caminho de libertação. Deus não está longe ou alheio às fadigas humanas, nem abandona os vacilantes que Nele esperam.

Delcy Pereira Carvalho Filho

Graduando em Filosofia – Academia Atlântico

 

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