Formação

A negação da infância

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Vestido_como_AdultoRecorrendo ao dicionário Aurélio, encontramos a seguinte definição para o verbete infância: “Período de vida que vai do nascimento à adolescência, extremamente dinâmico e rico, no qual o crescimento se faz, concomitantemente, em todos os domínios, e que, segundo os caracteres anatômicos, fisiológicos e psíquicos, se divide em três estágios: primeira infância, de zero a três anos; segunda infância, de três a sete anos; e terceira infância, de sete anos até a puberdade”.

É uma definição boa, sem dúvida, mas convém esclarecer que os significados da infância são construídos socialmente; são, portanto, atrelados a determinações culturais, sociais e históricas, para além do aspecto biológico.

No decorrer da história, percebemos as mudanças por que passou esse conceito. Na Idade Antiga, por exemplo, não havia o amor e o cuidado para com os pequeninos como hoje. Descartar a criança era algo normal. Se os bebês apresentavam alguma deficiência, era muito comum serem assassinadas ou abandonadas para que morressem sem cuidados. O pouco ou nenhum afeto estendia-se também aos filhos ditos normais. Os índices de natalidade eram altos – as famílias tinham inúmeros filhos – e também alto era o índice de mortalidade – a medicina não era muito desenvolvida. Dessa forma, até como um modo de se proteger do sofrimento da separação causada pela morte, os pais deixavam para ter afeto pelos filhos apenas se eles “vingassem”.

Com o nascimento do cristianismo, os valores foram reordenados e os vínculos humanos tomaram outra dimensão. Agora, os filhos significavam seres criados por Deus para o amor, era preciso proteger sua vida.

Na idade média, as crianças eram vistas como adultos em miniatura – se contemplarmos os quadros dos pintores da época observaremos nas roupas, nos traços, nas posturas das crianças esse aspecto.

É na idade moderna que acontece uma grande valorização da infância. Os filhos são desejados, os pais querem procriar para amar e serem amados pelos filhos. A sociedade começa a amar, considerar e proteger as crianças.

Nessa caminhada história, inúmeras pesquisas sobre a infância foram desenvolvidas, em várias áreas: pedagogia, psicologia, biologia, antropologia, sociologia. Isso contribuiu para que pais e educadores pudessem entender o potencial infantil e estimular seu desenvolvimento de maneira adequada. Graças a esses estudos, o conceito de infância foi profundamente alterado. Ora, se antes as crianças eram vistas apenas como promessa do ser adulto – ou seja, vista do ponto da imaturidade, do inacabamento, da imperfeição etc. – agora são vistas como seres que estão em desenvolvimento, sim, mas que seu presente já é importante; é desempenhando bem o que podem hoje que construirão, paulatinamente, a maturidade, a autonomia. Já são capazes hoje e não só quando crescerem.

A infância no Brasil

Falando da nossa realidade brasileira, não apenas no decorrer dos séculos, mas em cada década nós já vemos as mudanças na forma de conceber a infância. Por exemplo, nos inícios do século XX as crianças eram educadas ao silêncio, à obediência, a cumprirem regras, terem tarefas a desempenhar – ajudar a mãe nas tarefas domésticas, trabalhar na lavoura, etc. O olhar dos pais era suficiente para entenderem o que poderiam ou não fazer ou querer. Especificamente após uma vivência de radicalismo político, de submissão à ditadura, seguiu-se um período de permissivismo do qual experimentamos os ranços até hoje. As crianças tomaram o centro da vida familiar e, muitas vezes, dominavam os pais, tomavam decisões importantes e prematuras (já ouvi mães de alunos meus dizerem que seus filhos estão faltando muito às aulas porque decidiram não ir mais à escola – isso aos 7 anos de idade; cedo demais para uma decisão tão importante!)

E os pequenos ditadores espalham-se nas festas, nas praças, nos supermercados, nas lojas… Certamente, você já viu um menininho esperneando e berrando com a mãe no supermercado para levar um brinquedo e a mãe reagindo de maneira subjugada, obedecendo ao comando grosseiro do filho.

De um momento de descoberta da particularidade e potencialidade infantil – pois a criança vê o mundo com seus próprios mecanismos e é capaz de criar, inventar, empreender, cooperar e ser livre, segundo o grande educador Celestin Freintet – a sociedade passou a sofrer sob a tirania infantil. Não é à toa que hoje se fala tanto em limite na educação das crianças. Atualmente é grande o movimento de recuperar e permitir às crianças a vivência de um momento tão fundamental no seu desenvolvimento. Permitir que os pequenos sejam, de fato, crianças, sem terem de se preocupar com a aparência, com namoro, com decisões “importantes”, com o consumo, com coisas de gente grande.

Porém, em meio a essa busca de não mais negar nem deixar que as crianças neguem a infância, outra ameaça se apresenta. Com o advento das novas tecnologias da comunicação e da informação, há quem diga que surge um novo paradigma infantil: as crianças estão em pé de igualdade com os adultos. É certo que as crianças têm mais facilidade de manusear o computador porque sua curiosidade e ousadia as ajudam nessa tarefa, sem contar que já nascem praticamente olhando para esses aparelhos eletrônicos, enquanto que para muitos adultos ainda são “seres estranhos”. O fato de não terem medo das máquinas ajuda os pequenos a terem tão bom desempenho no seu uso.

Mas daí a derrubar as hierarquias e colocar as crianças em pé de igualdade com os adultos, a meu ver, é um grande equívoco. Talvez esse absurdo contribuiria a formar muitos “Peter Pan” – lembram-se do menino que não queria crescer? –, crianças que não se sentem motivadas a crescer, pois já estão “prontas”, iguais aos adultos. E nós já vemos crianças que não são bem orientadas a esse respeito, como são arrogantes diante dos pais e perdem com eles a paciência porque não sabem digitar ou mandar um e-mail, por exemplo.

Infância saudável

Convém abordar ainda o aspecto mercantil, que também ajuda a negar ou, no mínimo, a encurtar a infância. Os apelos comerciais fazem com que mais rapidamente as meninas precisem de salto alto, de maquiagem, de roupas “transadas”, de celular. O complicado disso tudo é que a brincadeira, tão importante para o desenvolvimento saudável do ser humano – segundo Freud, a criança que não brinca adoece emocionalmente – fica esquecida.

Além do aspecto emocional, pois na brincadeira a criança organiza suas crises, vence seus medos, derrota os “dragões” e elabora papéis, tem também o aspecto físico. Hoje, pesquisas e mais pesquisas revelam, preocupadas, o crescimento da obesidade infantil. Porque não correm, não sobem em árvores, não pulam, mas apenas deitam-se diante da TV ou sentam-se na frente do computador demasiadamente, ficam prejudicadas fisicamente.

Portanto, é preciso que pais e educadores se empenhem no resgate da infância e propiciem os pequeninos com quem convivem uma meninice saudável. Se a infância não for negada, certamente a vida adulta será mais ordenada e vivida melhor.

Auristela Barbosa

Formação Shalom 2002


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