Formação

“Esmagado por nossos crimes”

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Raniero Cantalamessa O.F.M.

Todos os que fomos batizados em Cristo Jesus – escreve o apóstolo Paulo – fomos batizados em sua morte (Rm 6,3). A nossa imersão na água, por ocasião do batismo, foi pois o sinal exterior e visível de outro “banho” e outra “sepultura”: na morte de Cristo. Mas é necessário que o que no início acontece ritual e simbolicamente venha por sua vez a concretizar-se de fato, mediante a fé, no decurso da vida, para não se limitar a mero símbolo. Devemos tomar um banho salutar na Paixão de Cristo, engolfar-nos nela em espírito, sentir sobre nós todo o seu gelo e amargura, para sairmos como renovados e retemperados.

Está escrito que havia em Jerusalém uma piscina milagrosa, e o primeiro que nela mergulhasse quando suas águas borbulhavam ficava curado. Devemos nos jogar na piscina, ou melhor, no oceano que é a Paixão de Cristo. Pois tal é o sofrimento do Homem-Deus: um oceano ilimitado, sem bordas nem fundo.

Há uma paixão da alma de Cristo que é a alma da Paixão, isto é, lhe confere o seu valor único e transcendente. Outros sofreram os padecimentos corporais que Jesus sofreu e talvez até maiores. Em qualquer hipótese, é inegável que, do ponto de vista físico, as dores sofridas por todos os homens no decurso de todos os séculos formam um acervo maior do que as de Jesus consideradas em si mesmas, ao passo que todas as aflições e angústias dos homens em conjunto nem de longe se equipararão à Paixão da alma do Redentor.

Percebe-se esta paixão da alma nas palavras do Apóstolo: “Aquele que não conhecera pecado, Deus o tratou como pecado em nosso favor, para que pudéssemos nos tornar, por meio dele, justiça de Deus” (2Cor5,21). O próprio Filho de Deus, o inocente, o santo, tornado “pecado”, o pecado feito pessoa!

No Getsêmani, Jesus prega dizendo: “Afasta de mim esse cálice!” (Mt 26,39). Na Bíblia, a imagem do cálice quase sempre evoca a idéia de Deus contra o pecado (cf. Ap 14,10). A “taça da vertigem” de Isaías (Is 51,22). Escreve S. Paulo: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade” (Rm 1,18). É uma espécie de princípio universal. Onde há pecado, não pode deixar de haver o juízo de Deus, seu tremendo “não”! De outro modo, o próprio Deus se comprometeria com o pecado e a distinção entre bem e mal cairia por terra. O universo viria abaixo. A cólera de Deus não é a cólera dos homens; é outro nome da santidade de Deus.

Ora, na paixão, Jesus é impiedade, toda a impiedade do mundo. E sobre ele se derrama a ira de Deus. Deus “condenou o pecado na carne de Cristo” (cf. Rm 8,3)

A correta compreensão da paixão de Cristo é dificultada por uma visão excessivamente jurídica das coisas, pela qual se pensa que, de um lado, estão os homens com seus pecados e, de outro, Jesus que sofre e expia a pena daqueles pecados, porém, mantendo distância deles. A relação de Jesus com o pecado não é indireta e meramente jurídica, mas próxima e real. Em outras palavras: ele levava misteriosamente os pecados sobre si, carregando-os às costas. Dele se diz: “Carregou os nossos pecados no seu corpo” (1Pd 2,24). De algum modo, ele se sentia o pecado do mundo. É essa a paixão da alma.

Jesus carrega o pecado sobre si
Precisamos, de vez, dar um nome e um rosto a esta realidade do pecado, para que não fique sendo para nós uma idéia abstrata e, na opinião do mundo, algo de somenos importância. Jesus assumiu sobre si todo o orgulho humano, toda a rebelião manifesta ou surda contra Deus, toda a luxúria (que é e fica sendo pecado, conquanto todos os homens concordassem em sustentar o contrário), toda a hipocrisia, toda a violência e injustiça, toda a exploração dos pobres e fracos, toda a mentira, toda esta realidade tão terrível que é o ódio.

Na Paixão de Cristo alcançam sua plena realização as palavras de Isaías lidas na primeira leitura: “Ele foi esmagado por nossas iniqüidades; o castigo que nos dá a salvação caiu sobre ele” (Is 53,5). Ele é o “justo sofredor” que reza nos salmos e diz ao Pai: “Sobre mim pesa a tua indignação e me submerges com todas as tuas ondas…Sobre mim passou a tua ira, os teus pavores me aniquilaram” (Sl 88).

Que sucederia se todo o universo físico, com seus bilhões de galáxias, se apoiasse num só ponto, qual imensa pirâmide invertida ? Que pressão deveria suportar este ponto? Pois bem, na Paixão, todo o universo moral da culpa, que não é menos infindo que o físico, pesava sobre a alma do Homem-Deus. O Senhor – está escrito – fez cair sobre ele a iniqüidade de todos nós (Is 53,6); ele é o Cordeiro de Deus que “carregou sobre si” o pecado do mundo (cf. Jo 1,29). A verdadeira cruz que Jesus tomou sobre os ombros, que carregou até o Calvário, e na qual acabou sendo escravo, foi o pecado!

Já que Jesus carrega o pecado sobre si, Deus fica distante. Agora, a infinita atração existente entre o Pai e o Filho fica barrada por uma repulsão igualmente infinita. No verão dos Alpes, quando uma massa de ar frio que desce do norte embate com um ar quente que sobe do sul, irrompem tempestades pavorosas que convulsionam a atmosfera: nuvens e sibilos de ventania, raios que rasgam o céu de ponta a ponta, algo parecido aconteceu: nela a malícia suma do pecado embateu na suma santidade de Deus, conturbando-a até provocar suores de sangue e arrancar-lhe dos lábios a lamentação: “A minha alma está triste até a morte. Ficai aqui e vigiai” (Mc 14,34).

Ao falar dos judeus a certa altura da carta aos Romanos, diz S. Paulo que sente por eles tal sofrimento devido à sua rejeição do Evangelho, que estava disposto a ser ele mesmo “anátema”, separado de Cristo em proveito dos seus irmãos (cf.9,3). Aquilo que o Apóstolo entreviu como privação suprema, sem contudo ter de sofrê-la de fato, Jesus viveu-o realmente na cruz em toda a sua acerbidade; ele se tornou “anátema”, separado de Deus em prol dos irmãos. “Cristo – está escrito – resgatou-nos da maldição da lei, feito por nós maldição, como está escrito: ‘Maldito aquele que pende do madeiro’” (Gl 3,13). “Maldição – katàra” – pouco difere de “anátema”; indica separação de Deus e dos homens, uma espécie de excomunhão.

A experiência do silêncio de Deus, que o homem moderno sente tão agudamente, também nos ajuda a compreender alguma coisa da Paixão de Cristo, desde que se leve em conta que para o homem bíblico o silêncio de Deus não é a mesma coisa que para o homem de hoje. O silêncio de Deus avalia-se pelo fervor com que seu nome é invocado. Nada significa para quem não crê ou, embora creia, só tibiamente a ele se dirige. Quanto maior é a confiança posta nele e mais ardente a súplica, tanto mais lancinante se torna o silêncio de Deus. Daí podemos pressentir o que deve ter sido para Jesus o silêncio do Pai na cruz e o abismo que se oculta por trás daquele “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” (Mt 27,46). Também Maria ao pé da cruz sabe o que é o silêncio de Deus. Ninguém mais do que ela poderia apropriar-se da exclamação saída dos lábios dum Padre, ao recordar um período de feroz perseguição da Igreja sob o imperador Juliano, em que houve igrejas profanadas, e virgens violentadas: “Como foi duro, ó Deus, naquele dia, suportar o teu silêncio!”

Sobre a cruz, Jesus provou até o fim a conseqüência fundamental do pecado, que é a perda de Deus. Tornou-se o sem-Deus, o ateu! “Ateu” pode ter um significado ativo ou passivo; pode nomear alguém que recusa Deus, mas também alguém que é recusado por Deus. É neste segundo sentido que a palavra tão tremenda se aplica ao Cristo da cruz. O seu não foi um ateísmo culposo, mas de pena, em expiação de todo o ateísmo culposo de egoísmo ou de desatenção a Deus. É claro que jamais o Pai celeste esteve tão perto do Filho como nesse momento em que ele cumpre sua suprema obediência. Mas, enquanto homem, houve um momento em que Jesus perdeu de vista essa proximidade, “sentiu-se” abandonado.

Ela – diz um texto do Vaticano II – sofreu profundamente com seu Filho unigênito e associou-se com ânimo materno ao seu sacrifício, consentindo amorosamente à imolação da vítima por ela mesmo gerada”, tornando-se assim para nós “mãe na ordem da graça” (Lumen gentium, 58.61)

“Por nós”
No Novo Testamento o Querygma, ou anúncio da paixão, consta sempre de dois elementos: um fato: “sofreu”, “morreu”, e a motivação deste fato: “por nós”, “por nossos pecados” (cf. Rm 4,25;1Cor 15,3). A paixão de Cristo fica para nós inevitavelmente estranha, enquanto nela não se penetra pelo modesto porto de acesso do “por nós”, pois só tem noção adequada da paixão de Cristo quem conhece nela obra da própria leitura. Fora disto, todo o resto pode ficar sendo conversa no vazio.

Havia pois no Getsêmani o meu pecado pessoal que gravava o coração de Jesus; havia também na cruz o meu egoísmo e o abuso que faço da minha liberdade mantendo-o cravado nela. Se Cristo morreu “por meus pecados”, isto significa – transladando simplesmente a frase para a voz ativa – que eu crucifiquei Jesus de Nazaré! As três mil pessoas a quem Pedro se dirigiu no dia de Pentecostes não haviam estado todos presentes no pretório de Pilatos ou no Calvário a martelar os cravos, e no entanto ele lhes declara com grande veemência: “Vós crucificastes Jesus de Nazaré!” E sob a ação do Espírito Santo, eles reconheceram ser isto verdade, pois diz o texto que “sentiram o coração trespassado e disseram a Pedro e aos outros apóstolos: “Que devemos fazer, irmãos?” (cf. At 2,23-37).

“Ali estavas tu, ali estavas tu quando crucificaram o Senhor?” diz um espiritual cheio de fé. E prossegue: “Por vezes este pensamento me faz tremer, tremer, tremer”. Todas as vezes que o ouço, sou forçado a responder a mim mesmo: “Ai de mim, sim, também eu lá estava, também eu lá estava quando crucificaram o Senhor!”

É necessário que, na vida de todo o homem, suceda alguma vez um terremoto e que no seu coração se produza algo do que aconteceu na natureza no momento da morte de Cristo, quando o véu do templo se rasgou de alto a baixo, as pedras se fenderam e os sepulcros se abriram. É necessário que o santo temor de Deus abata de vez o nosso coração seguro de si, apesar de tudo. O apóstolo Pedro fez uma experiência semelhante e, se pôde clamar aquelas tremendas palavras às multidões, foi por tê-las antes clamado a si mesmo e, vendo Jesus a fitá-lo, “chorara amargamente” (Lc 22,61).

Faz pouco, ouvimos as palavras do Evangelho de João: “Contemplarão aquele a quem transpassaram” (Jo 19,37). Realize-se também conosco esta profecia; contemplemos aquele que trespassamos, fitemo-lo de maneira nova; choremo-lo como se chora um primogênito (cf. Zc 12,10). Se o mundo não se converte ouvindo-nos falar, homens da Igreja, converta-se vendo-nos chorar!

Cessem as tristes contendas
Chegou o momento de se realizar na vida de cada um aquele “ser batizado na sua morte”; que algo do homem velho se desprenda de cima de nós e fique sepultado para sempre na Paixão de Cristo. Já basta o tempo passado a satisfazer as paixões (cf. 1Pd 4,3). Já basta o tempo passado a nos justificar a nós mesmos e culpar os outros. Já basta o tempo gasto em polêmicas inúteis entre crentes e católicos. Cristo morreu “para reunir os filhos de Deus que estavam dispersos”(Jo 11,52), e nós continuamos a nos dividir e dispersar por motivos secundários? Como podemos perder-nos ainda a formentar nossas miúdas divergências, diante de um Deus que morre por amor de nós e diante de um mundo que ainda em grande parte o ignora? “Cessent jurgia maligna cessent lites – Cessem as tristes contendas, cessem as contestações e esteja em nosso meio Cristo Deus”, reza um velho hino gregoriano. Boa parte dos males e infelicidades que afligem as famílias, as comunidades, a própria sociedade e a Igreja depende do fato de que cada qual julga e denuncia os outros em vez de julgar e denunciar a si mesmo e o seu pecado; cada qual quer mudar os outros e bem poucos são os que pensam seriamente em mudar a si mesmos. Se resolvêssemos pôr em prática esta revolução dentro de nós, nesta mesma tarde o mundo seria melhor e a paz reinaria em nossos corações. Caso seja necessário propugnar a verdade e a justiça contra alguém, isto se faria melhor depois, com mais liberdade e caridade.

Salve ó cruz, única esperança
Só depois de termos passado por esta espécie de novo batismo na morte de Cristo, vemos a cruz mudar completamente de aspecto e, de capítulo de acusação contra nós e motivo de pasmo e tristeza, transformar-se em motivo de alegria e segurança. “Não há mais condenação alguma para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8,1); a condenação cumpriu a sua função e deu lugar à benevolência e ao perdão. A cruz aparece de preferência como nossa ufania e glória: “Quanto a mim, não haja outra ufania e glória a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14). Aqui, “ufania” indica uma jubilosa segurança, acompanhada de comovida gratidão, à qual o homem se eleva na fé. É o sentimento que pervade esta liturgia e que inspira o hino deste tempo da paixão: “O crux ave, spes unica – Salve ó cruz, única esperança”.

Como é possível ufanar-nos dum sofrimento que não suportamos, mas ao contrário provocamos? O motivo é que a Paixão de Cristo, agora, tornou-se “nossa”, nosso maior tesouro, o rochedo da nossa salvação. O “por nós”, de complemento de causa, passou a ser doravante complemento de fim. Se isso significava “por nossa culpa – propter nos”, agora, depois de termos reconhecido e confessado o nosso pecado e de nos termos arrependido, significa “em nosso favor – pro nobis”: “Aquele que não conhecera o pecado, Deus o tratou como pecado em nosso favor, para que nos tornássemos, por meio dele, justiça de Deus” (2Cor 5,21).

Extraído do livro: Nós pregamos Cristo Crucificado, editado pelas edições Loyola.


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