Formação

Gocce

comshalom

Ao primeiro raio de sol, o jovem parte, sem nada além da roupa do corpo. Compreendera: a liberdade interior é uma aventura que se deve viver sem subterfúgios, sem apoios, sem arrimos. É uma questão de verdade e a verdade não se veste de supérfluos.

Pensava sobre tudo isso quando a menina de cabelos longos e soltos, marcados, ainda pelas antigas tranças, passou, ao longe. Resolveu segui-la, deixando a estrada antes trilhada por tantos outros, sem ter como evitar lembrar-se de Frost: “Two roads diverged in a wood and I, I took the one less traveled by and that… that’s made all the difference!”. Sim! Também isso fazia parte da liberdade interior. Frost tinha razão: “Duas estradas bifurcavam-se a certo ponto, em uma floresta e eu, eu resolvi tomar a menos trilhada e isso… isso fez toda a diferença!”

Não foi fácil seguir a tal menina. Enquanto ela dançava e corria, feliz, ele caía em cada buraco, cortava-se em cada pedra, despencava em cada barranco, rolando ladeira abaixo. Logo depois, retomava as forças decidido a não cometer os mesmos erros para voltar a cair no primeiro desnível, a cortar-se na primeira farpa, a rolar, novamente, ladeira abaixo.

Pé torcido, olho roxo, dente quebrado, braço inchado, canela sangrando, coluna moída, jogou-se ao pé de uma árvore, furioso: “Como é que esta menina faz isso comigo? Então, não me respeita? Não ouve quando a chamo? Fica rindo de minha cara! Insensível à minha dor, à minha dificuldade! A culpa é dela de eu me encontrar agora assim: todo quebrado, perdido, morto de fome, de sede, de solidão, sem saber aonde ir. Perdi o caminho! Tudo culpa dela que, ainda por cima, nem me ajuda!”

Seus olhos cheios d’água ondeavam o vale por onde tinha descido a menina. Vale profundo, sem fim. Melhor não descer! Mas, onde ela se tinha metido? Teria descido naquela escuridão, naquele desconhecido? “Pois que suma!”, pensou, ressentido! “Pensa que é quem, a super mulher? Vai ver é uma feiticeira que me encantou, uma espécie de bruxa! Dizem que há este tipo de coisa nesta floresta, neste caminho. Bruxas, monstros, feiticeiras, todos empenhados em nos desviar! Bem feito se se tiver perdido! Não vou atrás dela! É por causa dela que estou neste estado! Ela que me enganou! Ela que me desprezou, me iludiu, me traiu!”

Exausto, adormeceu. Sua consciência, porém, pesava: não teria que ajudar a menina desaparecida nas profundezas daquela escuridão? Logo virava-se para o outro lado: melhor não ajudar desconhecidos. É perigoso! Ainda mais ela que lhe causara toda aquela aflição! Deixa ela lá. Melhor dormir e descansar. Não vai ser fácil encontrar o caminho de volta!

Acordou de um pulo e, antes que pensasse a mínima coisa, viu-se correndo em direção ao despenhadeiro para salvar a menina e, sem freio, caindo, sem amparo, Deus sabe quantas dezenas de metros, escuridão abaixo.

Ao voltar do desmaio, era noite. À escuridão do abismo unia-se a escuridão do céu para massacrá-lo de raiva e desespero: “Se eu pego aquela diabinha! Estragou toda a minha viagem, todo o meu plano! Por causa dela vou morrer à míngua aqui Deus sabe onde!”
De repente, uma tosse estranha, profunda, seca, assomou-lhe de dentro, rompeu-lhe os brônquios, rasgou-lhe a garganta, roubou-lhe a respiração, insistindo, intrépida, até que um papel lhe assomasse à boca. Cuspiu-o, atônito, na mão em concha, e abriu-o, curioso. No escuro, as letras brilhavam com luz própria: “Ninguém é capaz de causar-lhe mal. É você quem causa mal a si mesmo” (Epicletes). Esta é sua segunda direção”.

Lembrou-se de como tinha sido mais fácil culpar a menina, de como, ao longo de sua vida, havia responsabilizado ora um ora outro pelas situações difíceis que vivera. Compreendeu como, depois que se havia tornado “dono do seu próprio nariz”, na verdade, havia apontado o dedo para as pessoas, os acontecimentos, as “evidências”, declarando-os culpados por sua infelicidade e sofrimento, exigindo, infantil, imediata mudança de tudo e de todos.

Ergueu, finalmente, os olhos do papel. Diante dele, novamente, a bifurcação da estrada. A da direita, calcada pelos pés dos muitos passantes, pesados, carregados com seus fardos. A da esquerda, sempre virgem, pisada por viajantes leves, respeitosos, atentos ao seu interior, livres de fardos, prontos a viverem com tal amor, com tal humildade, com tal liberdade que seus pés mal a marcavam.

Decidiu tomar esta segunda, livremente, sem responsabilizar a ninguém, nem mesmo Frost. Entendia, agora, que era do seu interior que lhe vinha o sofrimento e optava, livremente, pela caridade que a todos perdoa, em tudo crê e tudo suporta. Ninguém lhe podia fazer mal. Era ele o único que poderia fazer mal a si mesmo.

Leves, seus pés mal tocavam a estrada pouco trilhada e isso… isso fez toda a diferença.

Maria Emmmir


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