Liv arrasta o corpo inerte do peregrino deserto afora. Vasto, vastíssimo aquele deserto cercado de picos de pedra em forma de grades. Em todo o trajeto, porém, não há pegadas. Estas se concentram aos milhões somente em volta da caixa sempre encontrada e sempre perdida. Montam guarda, como tristes testemunhas do estranho fascínio que o dinheiro exerce sobre o homem.
“Se eu te perguntasse, pobre peregrino, para que queres tanto dinheiro, tanto ouro, saberias responder? Claro que não! Como todos os outros tu o queres somente para tê-lo, nada mais. Em tua ilusão, ele te garante o poder, o prazer, a vida fácil. Tolo! Estúpido que és, peregrino teimoso! Depois de tanto ter conquistado, deixaste que algumas barras de ouro te roubassem a liberdade! Pobre peregrino! Passaste mais tempo a rodar em volta de tua caixa que a buscar a liberdade! Pobre, estúpido, tolo, louco peregrino! Perdeste tanto por tão pouco!”
Persistente, exausta, teimosa Liv puxa e puxa, caminha e caminha a arrastar o corpo do amigo, sem saber o que fará com ele. Em seu coração, uma indignação persistente: não aceita mais perder o amor de seus peregrinos para o amor à riqueza. Não que tenha ciúmes, que isso não é próprio de quem é livre. A indignação vem de vê-los perder a chance de serem livres para a escravidão de amar o dinheiro como um fim, de submeter tudo, todos e a si mesmos a este amor devasso, depravado, sedutor, corruptor do homem.
“Pronto! Chegamos!”, diz Liv ao corpo inerte, largando-o no chão de sua própria casa, onde jamais entrara peregrino algum que não tivesse passado por todas as provas. E olha que eram poucos, muito poucos. Fora a indignação que a fizera cometer esta insensatez, esta infração, correr este risco. Fazer entrar alguém que não tivesse passado por todas as provas era arriscar-se a contaminar-se e morrer. Sabia bem do risco: era ela ou ele. Os dois não tinham como sobreviver.
Sem forças, Liv desceu a escadaria para o seu quarto, no profundo do coração do Livre, e adormeceu, os longos cabelos soltos a cobrir o travesseiro. Era tudo o que podia fazer. Esperar.
Aos poucos, bem lentamente, ao redor do corpo do peregrino foram brotando tapurus, minhocas, vermes de todos os tipos, que lhe corroeram, lentissimamente, as roupas, os sapatos – sim, ele havia resolvido usá-los no deserto!- o cinto, os cabelos, a barba, os cílios, as unhas, os pelos do corpo. Nada mais o cobria. Nada mais possuía. Os vermes haviam devorado tudo, sem deixar rastro, sem deixar resto. Deitado na fria terra, dia e noite, o peregrino inerte, cego e surdo, alienado e paralítico,se deixava devorar, imundo da areia fétida do nojento deserto onde escolhera a morte.
Um dia, Deus sabe que dia, acordou do sono de morte. Na casa de Liv, recobrou, lentissimamente, as forças, pois só lentissimamente se recuperam as forças de quem é escravo do dinheiro, dos bens. No começo, era triste, muito triste, e só pensava na caixa de ouro. Pensou até em voltar ao deserto e trazê-la para aquela casa tão misteriosa, mas desistiu no dia em que encontrou roupas de couro exatamente do seu tamanho para cobrir sua nudez.
Certo dia, depois de muito, muito tempo, tendo suas unhas crescido, seu cabelo e pelo reaparecido, lembrou-se de Liv. Esta, entretanto, dormia muito, muito abaixo, em lugar que ele não conhecia. “Preciso encontrá-la”, lembrou-se, recordado do rosto que vira antes de perder os sentidos. Terá sido ela quem me trouxe aqui?
Mais uma interrogação. Mais um fato a intrigá-lo. Sabia que alguém cuidava dele, mas quem? Queria partir, mas para onde?
Uma manhã pareceu-lhe ouvir um barulho e, seguindo-o, rápido, encontrou pegadas de sangue. Pegadas humanas. Seguiu-as e elas o levaram a uma grande poça de sangue sobre a terra que o sorvia, sedenta e aflita. Sem saber como, entendeu que tudo aquilo estava ligado a ele: as pegadas, o sangue, a terra aflita, o silêncio de tantos, tantíssimos meses que haviam embranquecido seus cabelos e gasto seu corpo. Sabia o que deveria fazer: esperar. A busca não era mais sua. Havia chegado ao fundo do poço. Sabia que alguém o buscava. Quem?
Sentado no chão, em sua veste de couro, o peregrino cavou a terra ensanguentada, mais rápido que ela e, sem pensar no que fazia, passou sobre o próprio rosto aquele sangue que, a um só tempo, era seu e não era. Um pacto? Uma aliança? Um pedido de socorro? Um socorro?
Havia aprendido que as palavras não definem muito o que realmente importa. Havia entendido que o andar afoito do peregrino não o levaria a lugar nenhum que realmente importasse. Havia decidido esperar, confiar, esperar, o nosso peregrino.
Maria Emmir Oquendo Nogueira
Continuação dos Gocce sobre
a liberdade interior