Formação

Gocce

comshalom

nosso herói segue, leve, pela estrada menos trilhada, feliz por identificar em si uma liberdade interior cada vez maior. Sem dúvida, ter-se visto livre de suas seguranças, ter-se decidido a assumir sua própria vida sem responsabilizar os outros por suas tristezas e ter-se decidido a viver atento ao seu interior, em busca dos horizontes mais profundos que a menina livre escolhera haviam feito, já, uma grande diferença em sua alma.

Sua oração era mais livre, mais autêntica. “Realmente”, pensava, “já devo estar bem perto da tal liberdade interior”. Sentia os pés leves, quase flutuando na estrada semi-virgem.

Distraído consigo mesmo, desatento à verdade que lhe gritava de dentro da alma, o jovem vê-se sugado, a partir de baixo, por um pântano movediço feito de pedaços de sua história. Incapaz de sair, debate-se entre falsas pedras de lembranças, acontecimentos, sofrimentos, alegrias, desafios, relacionamentos. Ainda com forças, afasta com as mãos as lembranças dolorosas, chuta os acontecimentos tristes, vira as costas aos sofrimentos e agarra-se às alegrias. Estas, porém, grudam-se a ele e desaparecem instantaneamente, sugadas como fonte de força, enquanto ele encalça com os pés as tristezas do passado que insistem em levantar-se e os rostos, os muitos rostos que lhe aparecem do nada a invocar acontecimentos que ele preferiria esquecer.

Logo ele se vê exausto. Por mais que as alegrias do passado se tivessem juntado a ele para dar-lhe forças, o passado desagradável, enterrado, surge em grandes bolhas do fundo movediço que o puxa mais e mais. Outros acontecimentos, sentimentos e rostos o oprimem pelos lados, pela frente, por detrás, e ele consegue apenas manter o rosto fora do pântano, para respirar, enquanto esperneia e luta desesperadamente, contra inimigos interiores que não enxerga nem sabe nomear, mas que, certamente, o ameaçam, inclementes.

De repente, um aperto de todos os lados e sua própria mão, lamacenta, guiada por misteriosa força, o sufoca e lhe prende a culpa que insiste em sair em um vômito imundo. Vê-se, assim, sufocado por dentro e por fora e sente que vai morrer. Seu corpo, sem que ele saiba como, torna-se um tênue limite entre seu passado que insiste em levantar-se e apertá-lo, movediço e incansável, que o aperta como que do exterior. Seu interior , por sua vez, é tomado pela culpa, acusação, angústia, medo que, sufocados, fervilham em vermes e espuma ácida a remoê-lo por dentro.

Já tonto, perdido e esmagado, quase desfeito como frágil balão de borracha cujo interior e exterior se confundem, nosso viajante dá-se conta de que há um só lugar inteiramente livre, um só pequenino local de liberdade, de luz, de paz, um lugar de amor, cuja entrada não enxerga, cuja localização desconhece. Percebe que lá nem o mundo nem o mal podem chegar e que lá o demônio não tem vez. Desesperado, pergunta-se onde fica, como chegar a este lugar que percebe como o centro dele mesmo, o centro de sua alma?

Em um esforço derradeiro, todo o seu ser deseja este tênue oásis de paz e ele percebe, espantado: “É habitado!”. Em seguida: “Sou habitado!” Livre do medo, desesperadamente desejoso de lá entrar, o viajante abandona-se e, surpreendentemente, ao invés de ser acolhido, vê-se a acolher, acolher, acolher um Deus que aí se dá sem reservas. Acolhe seu Habitante, que, em si, já acolheu o passado que lhe assusta, as lembranças que lhe doem, a culpa que o sufoca, o sofrimento que o esmaga. Seu coração pronuncia seu nome: “Deus, meu Deus!”. Nele, o viajante acolhe todo o pântano movediço, todo o vômito podre, que passam a ter sentido, tornam-se parte de sua vida, pois são ordenados para o Amor.

Moribundo, chegou a este lugar, a este centro. Cheio de Vida, de Deus alimenta-se, pois aí Deus se dá a ele e o leva a acolher em louvor, toda circunstancia, acontecimento, dor e alegria do seu passado e presente que, agora, ordenados para o Amor, tornam-se sacramento de Deus e perdem sua antiga importância, pois a ele só lhe interessa repousar, acima de tudo, neste Deus-Trindade que o habita.

Um fogo misterioso, então, toma o pântano e este se torna imenso incêndio de amor, liberdade e paz, dentro e fora do viajante que, feliz e perdido no centro de sua alma, acolhe o Deus que a ele se entrega.

Maria Emmir Nogueira

Este Gocce é baseado em São João da Cruz e seu ensinamento sobre o centro da alma.


Comentários

Aviso: Os comentários são de responsabilidade dos autores e não representam a opinião da Comunidade Shalom. É proibido inserir comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem os direitos dos outros. Os editores podem retirar sem aviso prévio os comentários que não cumprirem os critérios estabelecidos neste aviso ou que estejam fora do tema.

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *.

O seu endereço de e-mail não será publicado.