Formação

Gocce

comshalom

Nosso jovem prossegue em sua busca da liberdade interior. Saindo da floresta que lhe dera a compreender tantas coisas, depara-se com impressionante paisagem de altíssimos montes que o convidam e desafiam. Os picos se sucedem, imponentes, uns por trás dos outros, a guardar os vales que os separam. Preto e cinza, branco e azul se sucedem na estonteante paisagem gelada e silenciosa até mesmo em seu rio, cúmplice das águas dos altos cumes. Segredos que ele sempre desejara escondem-se nos picos brancos e cavernas secretas. O que escorre pelo rio não é mais que o segredo milenar transformado em agora, agora, agora, agora, a passar sempre. Paralisado diante da beleza, enche-se de respeito, tira o chapéu com uma mão inconsciente de si diante do imensamente belo. Reverente, sabe que beleza e verdade se supõem. Pasmo, sente-se ínfimo dono daquilo tudo e, ao mesmo tempo, imenso estranho a tanta beleza. Tudo é seu, mas dele nada vem. Tudo lhe pertence, mas ele nada comprou. Oh, espanto! Maravilha! Mistério!

Sem quase respirar, senta-se nosso jovem e, de tanto olhar e venerar esta verdade disfarçada de beleza, acostuma-se a ela e a si mesmo diante dela. Dentro dele, tanta beleza escravizada e diminuída pelo costume, dá lugar à feia dúvida:

“Espere! Eu já vi isso antes! Sim, mas não era bem assim… era … quase assim, um pouco diferente… Aquele pico à esquerda… deveria ser mais alto para enquadrar melhor a paisagem e aquela depressão, ali no meio, mais funda. Traria maior contraste para a montanha menor. Lá, à direita, deveria haver mais um flanco… evitaria avalanches… suavizaria o vento. E o rio, que desce sem controle, deveria estar guardado por mais pedras, bem maiores do que essas… Conheço essas coisas. Sei como é: um rio pode brotar de uma montanha, do seu pico, das altas neves, mas deve correr entre margens sólidas e deve formar lagos, grandes lagos serenos refletindo os picos brancos. Êpa! Onde estão os lagos?”

E, irreverente, nosso quase livre jovem perde sua paz a buscar o lago que deveria estar ali e as pedras que deveriam guiar o rio. Sobe pequenas elevações, escala árvores para enxergar melhor, mas nada de pedras, nada de lagos. Somente a mesma paisagem, inflexível, insensível às suas necessidades, impassível ante sua agitação.

“É… nada é perfeito, mesmo! Porque a Emmir não colocou aqui a paisagem que sonhei, que pensei que planejei minunciosamente? Faz-me passar por tantas peripécias e nem se importa com o que eu penso, com minha opinião, minha experiência, minha maneira de ver as coisas! Modifica, sem me consultar, a paisagem que sonhei! Afinal, sou ou não sou eu o personagem principal dessa história? Será que ela não vê que, desse jeito, vamos ter uma enchente, uma avalanche, um terremoto, sei lá, coisa mais séria?!?”

Foi então que o jovem reparou no vulcão que gemia e soltava fumaça disfarçado entre os picos mais próximos.

“Não! Não brinca, Emmir! O que pode ser pior que um vulcão em uma paisagem que era tão perfeita, pacífica, imponente, bela, verdadeira, até que…”

“Até que você exigiu dela que ela fosse perfeita ao seu modo e não ao modo dela”, completou a menina de longas tranças a balançar-se devagarinho em um galho mediano.

“Só faltava você, Liv!”

“Que bom que descobriu meu nome!”, disse ela começando a desfazer a trança do lado do coração.

“Porque você voltou a prender os cabelos? Da última vez que te vi, estavam soltos…”

“Ora, bobo, o jeito dos meus cabelos depende do que quero te dizer… Na verdade, em mim, eles estão sempre do mesmo jeito: soltos.”

“E o que você me quer dizer hoje?”

“O que já disse: a paisagem era bela, pacífica, imponente, verdadeira, até que você exigiu que ela fosse perfeita ao seu modo e não ao modo dela!”

“E o que tem isso a ver com seus cabelos?”

“Com minhas tranças…”

“Com sua trança…”

“Suas exigências me prendem, me reduzem, me escravizam e me matam dentro de você. A liberdade interior, tolinho, não está em que as coisas e pessoas sejam como você quer, sonha, deseja, exige… Deus te deu tudo e todos, até Ele mesmo, para você tudo ordenar para o amor, a acolhida, a aceitação, a doação, não para que você se satisfaça como um menininho egoísta e mimado, um deusinho que quer construir o mundo e as pessoas à sua própria imagem! No momento em que você quis modificar a paisagem, foi-se a sua beleza, reduziu-se o seu mistério, você tornou-se presa angustiada do seu egoísmo!”

“Mas… vai haver uma avalanche! O rio vai transbordar! O lago não vai existir! E a Emmir, ainda por cima, colocou um vulcão que geme e fumega!”

“Foi mesmo ela quem o colocou? Aliás, não vejo vulcão nenhum… E quem está gemendo é seu estômago… quem está fumaçando são suas narinas, respirando inquietas…”

O jovem calou-se, embaraçado. Para não ficar por baixo, provocou:

“Pior você, com esse cabelo esquisito, metade solto, metade preso…”

“Também meu cabelo deve ser como você quer…” e a menina começou a rir e rir à solta, cabelo todo livre ao vento, balançando-se alto no mais alto galho.

Irritado, o jovem sentiu frio. Ao passar a mão no braço percebeu: um dos seus braços estava coberto, o outro, nu. Uma das pernas abrigada, a outra despida. Um dos pés calçados, o outro descalço. Era ele sua própria prisão. Estava livre, mas ainda não totalmente. Era, ainda, ele, o inadequado, o que não era pequeno o bastante, humilde o bastante, abandonado o bastante, livre o bastante para acolher o que não era como ele queria que fosse.

Sentado, resolveu respirar fundo e apreciar a beleza do pico da esquerda, do rio entre pequenas pedras, do flanco imóvel, do vulcão interior, dos cabelos soltos da menina que não parava quieta. Sorveu toda aquela beleza, acolheu, sem lutar, toda aquela verdade a um tempo exterior e interior. Sorveu tanto e tanto que fechou os olhos por longo, longo tempo. Ao abri-los, percebeu que tudo continuava como sempre havia sido. Compreendeu que não havia perigo de avalanche, nem de inundação. Tudo estava seguro por uma Mão que deixava-se ver na verdade do belo. O vulcão não mais existia, nem suas pernas e braços sentiam o gelo do vento. Somente seus pés, descalços, comungavam com a beleza-verdade que, pouco a pouco se acumulava, sussurrando, sobre eles, refletida em um mínimo, límpido e gélido lago que, humilde e cúmplice, independente de sua vontade, começava a se formar.


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