Ao falarmos da vida cristã em relação à experiência de Deus, não queremos dizer em que consiste. Entendamos vida cristã como a situação concreta de cada um, coincidindo com a história pessoal de cada um. Por isso, torna-se difícil, se não impossível, falar da vida cristã. Bem ou mal, sinceros ou não, satisfeitos ou insatisfeitos, somos cristãos e pertencemos a uma comunidade de fé. Mas não são as doutrinas nem o fato de pertencermos a uma comunidade fé que vão dizer em que consiste a vida cristã, em que sentido somos cristãos.
Somos na medida em que experimentamos, pois o ser do cristão não é uma coisa física fora de si. É antes, um sentido da vida que se manifesta na experiência cristã. Isto significa que tenho a vida cristã que mereço, na medida em que vou conhecendo-a, assumindo-a e na medida em que sou assumido pela sua afeição. Sou, portanto, responsável pela vida cristã. O que é vida cristã só me é dado na medida de minha responsabilidade, de meu devotamento pessoal.
Por isso, se na dúvida ou na crise nos perguntamos o que é ser cristão ou se vale a pena ainda ser cristão, essas perguntas não terão nenhuma resposta real se não percebermos que estamos perguntando não pela Vida Cristã fora de nós, mas sim pelo nosso próprio ser cristão. Se eu, por exemplo, sou impaciente e superficial no meu modo de ser, a minha pergunta pela vida cristã é também impaciente e superficial. Não perguntando fundamentalmente, não teremos a possibilidade de ouvir uma resposta fundamental, já que pelo nosso modo de ser, a nossa audição é impaciente e superficial.
Somos cristãos, mas não sabemos se o somos realmente. Somos, porém, cristãos pelo fato de estarmos carregando toda a nossa história pessoal. Resta-nos, pois, o melhor e começa pois, a tarefa de experimentar a vida cristã. Mas experimentar não é saber mais sobre uma coisa, não é vivenciar um momento agradável, mas é começar a caminhar num crescimento lento e paciente do sentido de vida. Fazemos isso na medida em que começamos a trabalhar em nós, tenaz e pacientemente, desvelando aos poucos o modo de ser nosso, ouvindo a manifestação do sentido da vida cristã que nos advém a partir da própria caminhada, realmente caminhada.
Neste trabalho de experienciar a vida cristã, Jesus Cristo é o nosso Mestre. Somos “cristãos” porque buscamos seguir Jesus Cristo e Seu Evangelho. Hoje, o Evangelho só existe na “interpretação” do historiar-se de nossa experiência: de experiência em experiência, ao ler o livro Evangelho, ele se revela com nova profundidade e quanto mais se lê e interpreta, mais se percebe que para além daquilo que se compreende, abre-se um abismo de profundidade inesgotável que só pode ser colhida no próprio caminhar da “história de nossa alma”.
Isto significa que o Evangelho só se torna presente na concreção de nossa experiência. Existem concreções que tiveram uma intensidade e profundidade muito grande, onde a presença do Evangelho se tornou muito compacta e densa: S. Agostinho, S. Francisco, S. Domingos, S. Inácio, S. Teresa, etc. São os mestres do seguimento de Jesus Cristo, o Grande Mestre. Deles surgiram diversas “espiritualidades”, caminhos que inspiram, provocam a nossa própria caminhada para a acolhida do sentido do Evangelho.
É como a obra de arte: quanto mais intensa e densa a presença da arte, tanto mais inspira e provoca novas obras de arte. É por isso que os artistas contemplam com tanta freqüência as obras clássicas dos grandes mestres antigos. Deixar-se inspirar e provocar pela obra não é copiar a obra. É antes, deixar-se colher pelo vigor da inspiração para eu caminhar na meu próprio sentido de vida. Mas, na medida em que meu caminho aumenta em profundidade e densidade, eu me aproximo, identifico-me, isto é, sou atingido pela mesma presença que colheu a obra do mestre, como abismo de profundidade do seguimento de Jesus Cristo na vida cristã.
Dom Fernando Mason é Bispo Diocesano de Piracicaba (SP)