Jean Vanier
Fundador da Comunidade Católica A Arca
L’Arche foi fundada em 1964, quando convidei Raphael Simi e Phillipe Seux para morar comigo. Consegui comprar uma pequena casa com a ajuda de uns amigos e morávamos lá. Estes dois homens tinham vivido em uma instituição bastante violenta depois da morte de seus pais. Minha intenção era formar uma comunidade com eles, e ajudá-los a viver uma existência mais humana.
Na Arca, pessoas com problemas mentais vivem com os assistentes, que querem partilhar suas vidas com eles e ser seus amigos. Moramos em pequenas casas bem integradas na região. Os mais fracos precisam do apoio, da ajuda dos que são mais fortes. Na Arca, descobrimos que o oposto é também verdadeiro: as pessoas mais fortes precisam das mais frágeis. Nós precisamos uns dos outros.
Os que não têm poder e são mais vulneráveis atraem o que há de melhor naqueles que são mais fortes: eles os chamam a ter compaixão, a amar de forma inteligente, e não apenas sentimentalmente. Aqueles que são mais frágeis ajudam os mais capazes a descobrir a sua humanidade, a deixar esse mundo de competição e pôr suas energias a serviço do amor, da justiça e da paz. O debilitado ensina o mais forte a aceitar melhor suas limitações, que ele sempre tenta esconder atrás de máscaras.
Há alguns anos recebi Loic em uma de nossas casas em Trosly-Breuil, na França. Loic é hoje um homem de 40 anos e parece ter apenas cinco. É pequeno, fraquinho, não fala e tem dificuldade de entender. Mas tem um coração sensível, percebe imediatamente se a pessoa que está perto dele é alguém que tem o coração aberto, se sabe amar, se é atencioso ou não. Morei um ano na casa dele, “La Forestiere”, e apesar de hoje estarmos em casas diferentes, continuamos muito próximos. Loic me ensinou a ser mais atencioso, mais amável. Ele abriu meu coração e inteligência. Ainda hoje enfrento a tentação de buscar o sucesso e o reconhecimento, mas ele quebrou muitos dos meus mecanismos de defesa e a minha necessidade de ter sempre a última palavra.
As pessoas mais vulneráveis podem também despertar em nós o nosso lado mais escuro e mais feio. Seus gritos, provocações, exigências constantes e depressões podem desmascarar nossas próprias angústias e violências. Não é verdade que para podermos crescer na nossa humanidade precisamos reconhecer a violência e o ódio dentro de nosso próprio coração, e tudo que consideramos vergonhoso e tentamos esconder? Na Arca, estamos gradativamente aprendendo a lidar com esses medos e energias de maneira positiva e também a nos libertar do poder de destruição que existe dentro de nós.
Um dos perigos da sociedade de hoje é supervalorizar a necessidade de independência e autonomia das pessoas através da competência e fortaleza e estabelecer as necessidades mais básicas de todo relacionamento. Atingimos a maturidade humana à medida que vivenciamos os relacionamentos mais profundamente e nos tornamos mais abertos e prontos para servir. Não somos todos responsáveis pela criação de um mundo novo onde há mais solidariedade e amizade? Se nos fecharmos, sufocaremos nosso coração e a energia do amor dentro de nós. Tratamos os outros indiferentemente. Tudo isso leva a grandes diferenças entre o fraco e o forte, e finalmente ao ciúme, ao ódio, à guerra e à morte.
A vida comunitária na Arca está fundamentada nos relacionamentos de coração a coração e a alegria de reconhecer nossa humanidade comum. Estamos descobrindo que o relacionamento começa com uma atitude de receptividade, confiança, acolhimento e escuta do outro. Isso leva à comunhão, que é o centro do amor onde cada um dá e recebe. Comunhão é confiança e respeito mútuo. Ela implica em humildade, abertura, vulnerabilidade e partilha, não somente dos dons e riquezas, mas também de nossa pobreza e limitações. Em comunhão, devemos falar de forma que possamos partilhar nossas idéias, nossa fé, nossas esperanças, dificuldades e limitações. A comunicação não verbal é também importante. Nós expressamos nossa compaixão, nossas dificuldades, necessidades e nossa dor através do amor em nossos olhos, da maneira como tocamos as outras pessoas, o tom da nossa voz e com todo o nosso corpo. As pessoas podem esconder quem elas realmente são atrás de palavras, idéias, teorias, suas funções e autoridade. A verdadeira personalidade é expressa através de gestos, expressões faciais, e da maneira como a pessoa acolhe os outros e cria relacionamentos.
As pessoas que têm alguma deficiência geralmente são desencorajadas. Durante anos foram consideradas como frustrações, projetos malsucedidos, com pouco ou nenhum valor. Em conseqüência dessas atitudes negativas, o portador de deficiência perde a confiança em si e se considera feio, inútil. Eles podem até se sentirem culpados por existir. Para ajudá-las precisamos lhes dar atenção, amá-las e confiar na sua capacidade de fazer as coisas.
Amar uma pessoa não significa fazer as coisas por ela, mas ajudá-la a descobrir sua própria beleza, unicidade, a luz escondida no seu coração e o significado da vida. Através do amor uma nova esperança é comunicada a essa pessoa e um desejo de crescer e viver.
Essa comunicação de amor pode exigir palavras, porém o amor é essencialmente comunicado por meios não verbais: atitudes, gestos, olhares e nossos sorrisos. Esta é a pedagogia da Arca que tentamos pôr em prática apesar de nossas inadequações.