Formação

A criança jogada na lagoa e o aborto

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Simone Cassiano da Silva foi condenada a oito anos e alguns meses por ter jogado na lagoa da Pampulha seu próprio filho de três meses. Por obra e graça de Deus a criança foi salva. O fato dá o que pensar. Que motivos teriam levado Simone a praticar tal insanidade? Com certeza ela vivia um momento extremamente difícil semelhante àquele que leva muitas mulheres a procurar o aborto. Fica então a pergunta: a justiça, severa nesse caso, poderia, no caso do aborto, ser mais complacente? Como podem os que defendem a legalização do aborto – sua descriminalização -, considerar crime a tentativa frustrada de Simone de se livrar do filho?

Reflitamos. Suponhamos que a criança jogada na lagoa tivesse uma semana de vida. Se ela tivesse sido abortada dois meses antes, o crime seria menor? E se o aborto fosse aos seis meses? Haveria diferença? E se fôssemos recuando até o primeiro dia de gestação, dia por dia, qual seria o dia exato em que aquela vida poderia ser tirada sem que constituísse um crime? Afinal em que fase do desenvolvimento seria justificável interromper a vida humana? No primeiro dia? Quanto mais recuarmos nos dias, mais frágil e indefesa é a vida em gestação. O crime seria menor porque aquela vida não teria ainda desdobrado todas as suas potencialidades? Os defensores da descriminalização do aborto costumam alegar o direito da mulher de dispor de seu corpo. Ainda que fosse eticamente correta tal afirmação, é evidente que o embrião ou feto não é parte do corpo da gestante, muito menos um tumor maligno. É um outro indivíduo. Mas, não é verdade que possamos dispor de nosso corpo. O suicídio ou o uso do próprio corpo a bel-prazer jamais podem ser justificados. Não podemos dispor de nossa vida nem da vida de terceiros. No caso do aborto, quem o pratica – tanto a gestante como o técnico que o realiza – está destruindo uma vida, tanto mais necessitada de defesa quanto mais frágil. O fato de a gestação estar no início deveria ser considerado uma agravante do ato criminoso uma vez que se verifica a absoluta impossibilidade da vítima de se defender. A hediondez do aborto revela sua brutalidade quando o feto já tem algumas semanas de vida.

Em artigo nessa coluna, com o título “Eu Vi um Aborto”, faz algum tempo, assim eu descrevia o aborto filmado por seu autor: “Foi-lhe aplicada uma dose de calmante e, logo depois, a anestesia. Seguiu-se a operação. Primeiro a dilatação do colo do útero. Ela se colocara na posição de dar à luz. Depois era necessário perfurar a bolsa amniótica. Quando o instrumento – amniótomo – tocava a bolsa, a criança se movia, em manifestações de aflição, como a se defender da agressão que lhe queria roubar o ambiente que lhe possibilitava viver. Ela não tinha como expressar seu desespero, o desespero da vida humana que ainda não sabia se dizer. Confesso que foi com relutância que continuei a presenciar a cena: uma mulher em posição de dar à luz e, colado a seu corpo, em posição de quem faz um parto, um médico, ou coisa parecida, a agir como quem vai extirpar um tumor maligno. E dentro um bebê sem ter onde se esconder. Ah! Se ele pudesse fugir para dentro do coração da própria mãe! Ali com certeza não tocariam nele. Perfurada a bolsa, a presa estava à disposição. Foi então introduzido no útero da mãe o aspirador que ligado a uma pequena bomba pneumática tinha a tarefa de sugar, aos pedaços, o pequeno ser. Ele morreu dando um forte grito. Aqueles que crucificaram Jesus escutaram esse grito quando Jesus morreu (Lc 23,46). Do lado de fora foram caindo os pedaços sugados. Sobrou a cabeça. Entrou em cena um novo instrumento, capaz de abarcar a cabeça como uma tenaz prende uma brasa. E assim veio para fora a parte mais nobre daquela pobre humanidade. Por fim fez-se a limpeza – havia fragmentos caídos pelo chão com manchas de sangue – do abrigo onde cresceu por 12 semanas aquela frágil vida”. Não penso que a gestante que procura o aborto deva ser punida com excessivo rigor. Basta-lhe a punição e a dor de tê-lo praticado. As circunstâncias que motivam uma mulher a procurar o aborto, sua situação psicológica – e outras razões – podem ser atenuantes para a gravidade de sua decisão. Mas deveriam ser punidos os autores do ato cirúrgico com severidade maior do que aquela usada na punição de Simone. Eles bem que poderiam ajudar a gestante a acolher a nova vida que cresce dentro de seu ser. Mas é a sociedade toda que deve responder diante do mistério da vida – diante de Deus – pelos incontáveis abortos que acontecem todos os dias pelo mundo afora. O aborto é fruto da permissividade e da violência, infelizmente muito presentes em nosso mundo. É estranho que existam pessoas que, lutando pela justiça social, sejam partidárias da legalização do aborto.

Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues
Arcebispo de Sorocaba (SP)


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