Pe. João Wilkes R. Chagas Jr.
Quando fazia o curso de Filosofia, no Brasil, a cada semestre devia apresentar um trabalho de pesquisa individual sobre algum tópico importante do pensamento de algum filósofo; o primeiro que fiz foi sobre “A Fé e a Razão no pensamento de S. Agostinho”. De fato, este é um tema que sempre me inquietou e interessou bastante. Para a conclusão do curso fiz uma monografia com o tema “Philia: Reflexões sobre o Amor de Amizade a partir da Ética a Nicômaco”. Neste trabalho defendia o valor da amizade no caminho de busca da verdade como contexto especialmente favorável para o reto filosofar.
Em outubro de 1998 tive a oportunidade de participar de uma missa na capela particular do Santo Padre e recebi, naquela ocasião, a Carta Encíclica Fides et Ratio, que logo comecei a ler. Tive também a chance de fazer, na mesma época, o Curso de Virtudes Teologais, com Mongillo, grande professor da Ordem dos Pregadores.
A partir de um estudo pessoal procurei estruturar a reflexão em três pontos, os quais desenvolverei ao longo de três artigos na seção Fé e Razão da revista Maná.
O homem em busca da verdade, do sentido da vida
A busca da verdade, segundo a Encíclica Fides et Ratio (FR) é um caminho progressivo de encontro e nova busca, numa tensão contínua, realizando-se “no âmbito da autoconsciência pessoal” (FR 1).
Este auto-conhecimento é feito na consciência da própria unicidade: o homem não é um ser fragmentado (corpo-alma, razão-fé) mas se conhece e se realiza na unicidade do seu ser; não se limita a um conhecimento fenomenológico, mas se levanta sempre dentro dele a questão do sentido último das coisas (metafísica) e da própria existência. O ser humano, pois, distingue-se das outras criaturas pela sua capacidade de autoconsciência, de incorporar à unidade da sua vida aquilo que é objeto do seu conhecimento.
“Existe, no mais íntimo do ser humano, uma ‘exigência de sentido”, da qual fluem “questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana” em todo tempo e lugar: “Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? Por que existe o mal? O que é que existirá depois desta vida?” (FR 1)
As experiências que vivo diariamente, a realidade interior e exterior, o sofrimento humano e a questão da morte, muitas vezes, me gritam aos ouvidos como que a me desafiar: a vida tem realmente sentido?
Respostas isoladas a questões também particulares não satisfazem. Existe dentro de mim o desejo do absoluto, de universalidade, a pergunta pelo fundamento, a procura de um valor supremo (cf. FR 27).
Algumas vezes, por ser a verdade muito exigente, tendo a querer evitá-la. Mas como viver sem ela? Como fundar a vida sobre a dúvida? Quando me escondo da verdade me deparo com o vazio e a tristeza.
“A sede de verdade está tão radicada no coração do homem que, se tivesse de prescindir dela, a sua existência ficaria comprometida. (…) Dentro de cada um de nós se sente o tormento de algumas questões essenciais e, ao mesmo tempo, se guarda na alma, pelo menos, o esboço das respectivas respostas” (FR 29).
A razão
Para progredir no conhecimento da verdade possuímos vários recursos, dentre os quais a filosofia (amor à sabedoria) ocupa um lugar todo especial; esta apresenta a questão do sentido da vida e procura esboçar a resposta à mesma.
Como acontece este caminho de conhecimento?
A contemplação do mundo criado gera no homem uma admiração, que por sua vez suscita a intuição de certos conhecimentos e princípios fundamentais a partir dos quais ele procura conhecer a realidade como um todo, encontrando um sentido na mesma. Para tal fim, faz uso da sua capacidade reflexiva, do rigor do pensamento filosófico e da lógica.
Neste caminho, uma tentação à qual precisamos estar atentos é a da soberba filosófica, quando se pretende fazer de uma perspectiva pessoal e particular uma leitura universal. Neste sentido a humildade de Sócrates, que reconhecia sempre a limitação do seu saber, tem muito a nos ensinar.
A reta razão é aquela que, intuindo e formulando os princípios primeiros e universais do ser, deduz de uma forma correta suas conclusões.
O conhecimento filosófico e científico (ordem da razão natural) têm como princípio a razão natural, fundamenta-se sobre a percepção dos sentidos, sobre a experiência e movem-se apenas com a luz do intelecto. Seu objeto são as verdades que a razão natural pode compreender.
A Encíclica Fides et Ratio aponta algumas regras que a razão deve respeitar para manifestar do melhor modo possível a própria natureza (cf. FR 18):
a) ter em conta que o conhecimento do homem é um caminho que não permite descanso;
b) humildade para reconhecer que nem tudo é fruto da conquista pessoal, no caminho de busca da verdade;
c) temor de Deus: reconhecimento da Sua transcendência e amor.
Nos primórdios da filosofia esta coincidia em grande parte com o estudo das ciências naturais. O livro da Sabedoria, por sua vez, não somente afirma a capacidade da inteligência humana (Sb 7,17.19-20) como declara que “pela grandeza e beleza das criaturas, pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor” (Sb 13,5). No seu orgulho e insensatez, porém, o homem pode negar-se a reconhecer isto.
A fé
A Igreja, enquanto comunidade de crentes, participa deste caminho da humanidade que busca a verdade, contribuindo neste processo de um modo fundamental, já que de Cristo recebeu esta mesma verdade como dom, no Mistério Pascal (Jesus é a Verdade – Jo 14,6). Como “boa dispensadora da multiforme graça de Deus”(1 Pd 4,10) a Igreja é chamada a distribuir este dom, a partilhá-lo com toda a humanidade através do seu ministério profético.
“Não te aflijas com aquilo que te ultrapassa, pois foi mostrado a ti mais do que o homem pode compreender” (Eclo 3, 23). Este texto me tocou de modo especial poucos dias antes de vir para Roma estudar teologia. Através dele pude compreender que nenhum conhecimento que eu possa adquirir neste mundo por meu próprio esforço pode chegar a superar aquele me é dado gratuitamente por Deus.
O conhecimento que é peculiar à fé é aquele “que exprime uma verdade que se funda no fato de Deus que Se revela” (FR 8). Tem como princípio a fé divina, fundamentando-se no testemunho de Deus e contando com a ajuda sobrenatural da graça. Tem como objeto os mistérios escondidos em Deus, que só podem ser conhecidos se nos forem revelados do Alto.
Em Jesus Cristo, na Sua Encarnação, realiza-se a síntese: “o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, Deus assume o rosto do homem” (FR 12). Nenhuma filosofia da linguagem poderia pensar tal poder de comunicação! Em Cristo questões que me parecem sem resposta encontram sentido no mistério da fé: por que o sofrimento? Por que a morte? Tudo aquilo que foi assumido por Jesus encontra nele sentido e ganha uma conotação salvífica.
Porém, “o conhecimento da fé não anula o mistério” (FR 13), antes, o evidencia, permite entrar dentro dele e propicia uma compreensão do mesmo na fé, que envolve aceitação, adesão, obediência a Deus. Este sempre confirma a fé diante da razão com sinais, que vêm em auxílio à mesma razão. Mesmo diante dos sinais, porém, nos vemos sempre, em última instância, interpelados em nossa liberdade a dar uma resposta fundamental de adesão ou não ao mistério.
Cristo é o “ponto de referência de que o homem não pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mistério da sua existência” (FR 14). Ele é a Revelação da Verdade em sua plenitude. Nele, ao mesmo tempo que nos tornamos partícipes da Verdade Suprema, enquanto estamos neste mundo somos convidados a caminhar na fé, a viver do mistério, a não descurar da responsabilidade que se nos impõe como seres racionais: “de ampliar continuamente os espaços do próprio conhecimento até sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance” (FR 14).
De fato, a experiência de fé nos ensina que o Senhor “não joga pérolas aos porcos”, que Ele abre, mas a quem bate; dá, mas a quem pede. É preciso “agir como se tudo dependesse de mim e esperar tudo de Deus”.
Shalom Maná