Gastamos uma grande parte da vida trabalhando. Usualmente, para nós, o trabalho é oposto ou ao menos diferente de descanso, lazer, jogo, e entendemos por trabalho aquilo que fazemos por nossa profissão, por exemplo, ensinar, cozinhar, estudar, administrar, planejar, etc. O trabalho pode ser sentido como algo duro, penoso, pesado e incômodo, um mal necessário para se obter um fim, como o sustento da vida, por exemplo. Pode também ser ocupação para preencher o tédio da vida.
Surge a pergunta: onde está o vigor fundamental do meu viver que unifica todos os meus afazeres e atividades dando-lhes sentido coerente e vivo e sem o qual eu deixo de ser cristão? Respondemos dizendo que o vigor que unifica meus trabalhos é a família, a vida espiritual, o serviço aos irmãos. É isso ou aquilo. Para que uma resposta tenha seriedade, não basta que seja apenas um desejo, uma aspiração. Eu posso, por exemplo, desejar ser, com toda sinceridade, um grande violinista. Isto, porém, não basta. Para ser realmente um grande violonista é necessário o trabalho de longos exercícios e da longa experiência.
Para conquistar o vigor fundamental que unifique todos os nossos afazeres requer, portanto, um empenho todo especial maior do que nosso querer e saber; é um empenho que sabe ouvir, acolher e dinamizar o querer da vida em nós. Um exemplo: trabalho num escritório e tenho a função de datilografar os dados estatísticos de uma firma. É um trabalho para o meu ganha pão.
Como seria o modo de trabalho de um cristão a partir da sua “religiosidade?”. Poderia, por exemplo, assumi-lo como penitência, como oferecimento a Deus, como testemunho de humildade, dedicação. Tudo isso pode ser muito bom, mas ainda não é propriamente fazer a experiência do vigor fundamental do nosso viver, pois, no fundo, não assumi o trabalho mecânico da datilografia. De repente, começo a perceber que datilografo como vivo a vida. Assim, começo a perceber que é necessário descobrir no datilografar um modo de viver que deixa ser o tempo da vida.
Aos poucos você aprende um outro modo de trabalho, onde se exige uma atitude de espera atenta, decisão lenta, mais rigorosa na percepção do tempo oportuno, maior concentração de captar o essencial em toda a linha do seu viver. Talvez comece então a perceber que todas as realidades humanas na sua raiz e todas as realidades divinas em nós e nos outros só crescem, aparecem nesse modo trabalhar.
São Francisco diz que é necessário trabalhar “com devoção” e “honestamente”. O Salmo 127, 2, na tradução do Saltério Romano, estranhamente diz: “comerás do trabalho dos teus frutos”. Esta frase parece estar invertida. Usualmente, diz-se “frutos do trabalho”. São Francisco pensa: o fruto é de uma árvore, e até que a árvore floresça e dê frutos, há um trabalho enorme por parte dela, não só da árvore, mas do sol, da chuva, do clima e também do lavrador; assim, ele não se sente dono do fruto, mas alguém que colaborou para que surgisse o fruto.
Ele falaria para a uva: “Uva, como tu trabalhaste para ser uva! Tu trabalhaste, mas não foste só tu: Deus trabalhou contigo. Aliás, foi Ele quem fez a maior parte”. Explorar o “trabalho do fruto” é desonesto, diz São Francisco, pois não se pode vender o enorme trabalho do céu e da terra, da planta, o trabalho de um lavrador, o trabalho de uma comunidade.
São Francisco tinha muito medo de se tornar ladrão, roubando a Deus e atribuindo a si o bem que vem Dele. Viver do trabalho não é “viver da própria produção”, mas da colaboração, da participação na criação de Deus. Deus não é o senhor e o dominador; é antes, o Criador, o Servo de toda a criatura. E o que brota como fruto é trabalho do próprio fruto. É desse trabalho do fruto que se vive. Essa atitude é honesta, é digna de um trabalhador que participa da ação operária de Deus Criador.
Dom Fernando Mason
Bispo diocesano de Piracicaba