Entrevista com secretário da Congregação para a Doutrina da Fé
As diferenças entre o homem e a mulher não são motivo de rivalidade nem podem ser eliminadas; fundamentam uma relação de colaboração na mesma dignidade, afirma um documento da Santa Sé.
É a proposta central da «Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração entre o homem e a mulher na Igreja e no mundo», publicada em 31 de julho passado pela Congregação para a Doutrina da Fé.
Nesta entrevista concedida a «Rádio Vaticano», o arcebispo Angelo Amato, SDB, secretário desse organismo, explica os motivos pelos quais a Santa Sé publicou o documento.
Depois de «Mulieris dignitatem» (15 de agosto de 1988) e da «Carta às mulheres» (29 de junho de 1995) de João Paulo II, que há de novo sobre a mulher nesta intervenção da Congregação para a Doutrina da Fé?
Dom Amato: A novidade está na resposta a duas tendências bem marcadas da cultura contemporânea. A primeira tendência sublinha fortemente a condição de subordinação da mulher, que para ser ela mesma deveria apresentar-se como antagonista do homem. Propõe-se, portanto, uma rivalidade radical entre os sexos, segundo a qual a identidade e o papel de uma parte constituem uma desvantagem para a outra.
Para evitar esta contraposição, uma segunda corrente tende a eliminar as diferenças entre os dois sexos. A diferença corporal, chamada «sexo», é minimizada e considerada como um simples efeito de condicionamentos sócio-culturais. Sublinha-se ao máximo, portanto, a dimensão estritamente cultural, chamada «gênero».
Daqui nasce a contestação do caráter natural da família, composta pelo pai e a mãe, a equiparação da homossexualidade com a heterossexualidade, a proposta de uma sexualidade multiforme.
Qual é a origem desta última tendência?
Dom Amato: Esta perspectiva nasce do pressuposto segundo o qual a natureza humana não teria em si mesma características que a determinam de maneira absoluta como homem e mulher. Por este motivo, toda pessoa, livre de toda predeterminação biológica, poderia moldar-se segundo lhe convier.
Ante estas concepções errôneas, a Igreja confirma alguns aspectos essenciais da antropologia cristã fundados na revelação da Sagrada Escritura.
E o que diz a Bíblia sobre isto?
Dom Amato: A parte mais ampla do documento se dedica precisamente a oferecer uma meditação sapiencial dos textos bíblicos sobre a criação do homem e da mulher. O primeiro texto de João 1, 1-2, 4, descreve a potência criadora de Deus que realiza as distinções no caos inicial (luz, trevas, mar, plantas, animais), criando por último o ser humano «à imagem sua, à imagem de Deus» (Gênesis 1, 27).
Também a segunda narração da criação, Gênesis 2, 4-25, confirma a importância essencial da diferença sexual. Ao primeiro homem, Adão, Deus lhe põe a seu lado a mulher, criada de sua mesma carne e envolta no mesmo mistério.
Que quer dizer isso?
Dom Amato: O texto bíblico oferece importantes indicações.
O ser humano é uma pessoa, na mesma medida o homem e a mulher. Encontram-se em uma relação recíproca.
Em segundo lugar, o corpo humano, marcado pelo selo da masculinidade e da feminilidade, está chamado a existir na comunhão e no dom recíproco. Por este motivo, o matrimônio é a primeira e fundamental dimensão desta vocação.
Em terceiro lugar, ainda que transtornadas e obscurecidas pelo pecado, estas disposições originárias do Criador nunca poderão ser anuladas.
A antropologia bíblica sugere, portanto, que há que enfrentar com uma atitude de relação e não de competência os problemas que em patamar público ou privado afetam as diferenças de sexo (n. 8).
O documento oferece outras indicações?
Dom Amato: A carta faz também considerações teológicas sobre a dimensão esponsalícia da salvação. No Antigo Testamento, por exemplo, configura-se uma história de salvação que põe em jogo a participação do masculino e do feminino, por meio das metáforas de esposo-esposa e de aliança. Trata-se de um vocabulário nupcial que orienta o leitor tanto para a figura masculina do Servo que sofre como à figura feminina de Sião (Cf. n. 9).
No Novo Testamento estas representações encontram seu cumprimento: por uma outra parte, em Maria, eleita filha de Sião, que recapitula a condição de Israel-esposa em espera do dia da salvação; por outra parte, em Jesus, que recapitula em sua pessoa o amor de Deus por seu povo, como o amor de um esposo pela esposa.
São Paulo desenvolve este sentido nupcial da redenção, concebendo a vida cristã como um mistério nupcial entre Cristo e a Igreja, sua esposa. Integrados neste mistério de graça, os esposos cristãos, apesar do pecado e de suas conseqüências, podem viver sua união no amor e na recíproca fidelidade.
A conseqüência é que o homem e a mulher já não experimentam sua diferença em termos de rivalidade ou de oposição, mas em termos de harmonia e colaboração.
Qual é a contribuição da mulher à vida da sociedade?
Dom Amato: A mulher, diferentemente do homem, tem seu próprio carisma, chamado «capacidade de acolhida do outro» (n. 13). Trata-se de uma intuição ligada a sua faculdade física para dar a vida, que a orienta ao crescimento e à proteção do outro. O «gênio da mulher» lhe permite conseguir logo a maturidade, o sentido de responsabilidade, a resistência nas adversidades. Esta bagagem de virtudes leva as mulheres a estarem ativamente presentes na família e na sociedade com a proposta de soluções, em certas ocasiões inovadoras, aos problemas econômicos e sociais.
Como se concilia na mulher o trabalho com seu papel na família?
Dom Amato: Trata-se de um problema importante. A sociedade deveria avaliar adequadamente o trabalho exercido pela mulher na família e na educação dos filhos, reconhecendo seu valor em patamar social como econômico.
Como se articula hoje a contribuição da mulher à vida da Igreja?
Dom Amato: Na Igreja, o papel da mulher é particularmente central e fecundo. Desde o início, a Igreja se considerou como uma comunidade ligada a Cristo por uma relação de amor. Nisto, a Igreja, esposa de Cristo, há sempre visto em Maria sua mãe e seu modelo. Dela aprende alguns comportamentos fundamentais, como a acolhida na fé da palavra de Deus e o conhecimento profundo da intimidade com Jesus e de seu amor misericordioso.
A referência a Maria, com suas disposições de escuta, de acolhida, de humildade, de fidelidade, de louvor e de esperança, põe a Igreja em continuidade com a história espiritual de Israel. Estas atitudes são comuns a todo batizado. De fato, contudo, é próprio das mulheres vivê-las com particular intensidade e naturalidade.
Deste modo, a mulher tem na Igreja um papel de máxima importância, convertendo-se em testemunho e modelo para todos os cristãos da maneira em que a esposa tem de corresponder ao amor do Esposo (n. 16). Deste modo, contribui de maneira única a manifestar o rosto da Igreja como mãe dos fiéis.
Qual é a conclusão?
Dom Amato: Na realidade se podem tirar duas conclusões: redescobrimento e conversão: redescobrimento da dignidade comum do homem e da mulher, no recíproco reconhecimento e na colaboração; conversão por parte do homem e da mulher a sua própria identidade originária, «imagem de Deus», cada um segundo a graça que recebeu.