Formação

Deus nos fez comunidades

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A essência do homem é Deus. Fomos criados à sua imagem e semelhança e por conseguinte, apresentamos características básicas e infusas dessa filiação. Desenvolvemos aspectos intrínsecos que o Criador quis que herdássemos d’Ele próprio, como sinal da semelhança divina. Um desses pontos no qual vamos nos deter é a unidade, mola propulsora da vida em comunidade, jorrada do próprio seio da Santíssima Trindade. A Trindade é a fonte de toda comunhão, é dela e a partir dela, que todo o amor humano, e conseqüentemente toda doação se manifestam numa abertura para o outro. Aí está a base de toda comunidade.

O tripé que sustenta toda a vida em sociedade: Unidade, Doação e Abertura. Sem eles deixamos de nos assemelhar à Trindade, fugindo do desígnio divino para a vida em comum. Antes de ser obra dos homens, a comunidade é um Dom de Deus, que chamou cada um de seus membros para entrar em íntima relação com Ele e com os outros, isto é, à comunhão interpessoal e à fraternidade universal (1). Essa é a síntese da vocação humana: Viver em comunhão com Deus e com seus irmãos.

Jesus mesmo nos ensinou, quando chamou os apóstolos pessoalmente, um a um, para participar com Ele e com os outros discípulos, da sua vida e destino (cf. Mt 3,13-15). Estava assim inaugurada a comunidade cristã, comunidade essa que vivia junto do seu mestre, que seguia os seus caminhos, e bebia suas palavras. Olhando para a comunidade dos discípulos, temos um referencial sólido de ideal de vida, de comunhão completa e dinamismo unificante, encontrando assim, seu arquétipo na vida de unidade das pessoas da Santíssima Trindade. O teólogo S. Gregório de Nazianzeno já professava essa fé na Trindade como a perfeita comunidade, quando dizia: “Nem comecei a pensar na Unidade e a Trindade me banha no seu esplendor. Nem comecei a pensar na Trindade e a unidade toma conta de mim” (2).

As pessoas divinas são realmente distintas entre si. Deus é único, mas não solitário. É o amor e a doação entre o Pai e o Filho que gera o Espírito Santo que, por sua vez, é o mantenedor dessa relação, preservando assim a unidade. São distintos entre si pelas relações de origem: é o Pai que gera, o Filho que é gerado, o Espírito Santo que procede. A Unidade Divina é trina. Não se pode falar de comunidade cristã sem se associar à comunidade divina. Aquela nada mais é que um reflexo dessa, um transbordar do amor de Deus, do Deus Trino que quis reproduzir também entre nós um modelo de comunhão. Quis que também nós experimentássemos a alegria da individualidade e da interdependência, não nos fechando em nós mesmos.

Como sinal do trasbordamento dessa relação, temos aqui na Terra, outra semente da comunhão divina plantada por Deus para ser o berço da santidade, a célula geradora de toda comunidade cristã. Essa segunda fonte da unidade é a família que, no plano de Deus Criador, descobre toda a sua identidade e missão, que brotam do seu próprio ser e representam o desenvolvimento dinâmico das relações entre as pessoas da Trindade, haja vista que o princípio interior e propulsor da família é o amor, que deve ser gratuito e recíproco entre seus membros. A primeira comunhão acontece e se desenvolve nos próprios cônjuges, que através do pacto de amor conjugal, homem e mulher “já não são dois, mas uma só carne” (cf. Mt 19,6), e abraçam o destino, a partir de então, em conjunto e não mais individualmente, como outrora.

Uma vez instaurada, e por ser reflexo da unidade Trina é, por conseguinte, indissolúvel. Fica fácil, então entender e assumir essa condição básica e orgânica do matrimônio. É sinal do amor absolutamente fiel de Deus Pai manifesta pelo homem e que Cristo demonstra pela Igreja. Tal amor radica-se nos laços naturais da carne e do sangue vivificados na instauração e maturação dos laços ainda mais profundos e ricos do espírito, que anima as relações entre os mais diversos membros da família. O Espírito Santo, que se infunde na celebração dos sacramentos, é a pura raiz e o alimento constante da comunhão sobrenatural entre os componentes da família, tornando-a a perfeita extensão e continuação do amor Trinitário aqui na Terra.

Hoje, mais do que nunca, estamos conscientes dos múltiplos e complexos problemas que a família enfrenta, como instituição e como vocação. As forças inimigas sabem que conseguindo destruí-la, ou mesmo, desorganizá-la, conseguirão frustrar todo e qualquer futuro comunitário bem sucedido. Em vista disso, reforça-se a responsabilidade dos cristãos, a exemplo da Sagrada Família, que seguiu a risca os ensinamentos de Deus e viveu em função do menino Jesus tornando-O o centro da sua existência e sentido da união. Como fruto da doação dessa divina família, temos toda a Igreja contemporânea, pois foi através da Unidade e amor de Maria e José que Jesus pôde crescer humanamente e desenvolver-se em um ambiente de amor e cooperação. A pregação de Jesus certamente levou influências do modo de viver e do estilo de vida da sagrada família, gerando a comunidade dos fiéis a qual hoje fazemos parte.

No Concílio Vaticano II, essa questão já era analisada com cuidado, levando os bispos a afirmarem que “o bem da Igreja da sociedade está intimamente ligado ao bem da família” (3). Não pode haver comunidades santas sem famílias igualmente santas, visto que toda família é reflexo e extensão do amor da Trindade, levando seus membros a ansiarem uma doação maior a Deus e aos irmãos, fazendo-os renunciar a diversas coisas (muitas vezes lícitas) por amor a Cristo, ao ponto de deixar suas famílias de origem e se congregarem na nova família cristã que escolheram.

Não por acaso é que o número de comunidades com pequeno número de membros tem aumentado. As exigências apostólicas e os apelos mais insistentes do coração do homem impulsionam-lhe cada vez mais a ocupar um lugar onde possa ficar mais próximo de Deus, mais parecido com a Trindade, pois a vocação é a expressão do Dom de si a Deus e à Igreja. A vocação do homem não é só um chamado individual, mas uma convocação em conjunto com o outro, compartilhando a existência diária, os problemas e as alegrias, de acordo com o carisma e a característica de cada comunidade. Quando o homem aí se realiza, descobriu o chamado do Senhor para si. Nesse novo contexto em que está inserido, o tripé da Abertura, Doação e Unidade, novamente torna-se fundamental para a coexistência em comum e conseqüentemente para a subsistência da comunidade a que pertence. É vivendo com perfeição nossa comunidade humana que estaremos aptos a entrar, no dia da nossa morte, na Unidade perfeita da Trindade.

Notas bibliográficas:
1- Gaudim et Spes, 3.
2- Orígenes 40,41.
3- Gaudium et Spes, 47; Familiares Consortio, 3.

André Soares Cardoso


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