Formação

A cruz do Senhor: caminho de justiça, de amor e de sabedoria

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A cruz gloriosa do Senhor, sinal positivo de equilíbrio e de ordem, de paz e de vitória, continua sendo um ícone de sabedoria para quem, na verticalidade e na horizontalidade de seus traços busca um compromisso com o Evangelho. A proximidade das eleições deve levar os cristãos a refletir e se posicionar com lucidez diante dos apelos de Deus presente nos gritos barulhentos ou silenciosos dos homens e mulheres do nosso tempo.

1. Um compromisso de buscar a justiça social na transformação das estruturas
A preocupação com a justiça se torna um elemento muito importante para que a pobreza do consagrado o faça pobre para todos e pobre com os pobres. A sensibilidade para com a nossa realidade marcada por desigualdades abissais nos leva a compreender e a viver a pobreza evangélica a qual constitui uma profecia que se posiciona criticamente diante destes mortíferos mecanismos dos sistemas econômicos. Assim, estes cristãos são chamados a uma denúncia a tudo o que impede ou inibe uma libertação integral das pessoas sob o jugo de múltiplas formas de escravidão promovidas pelo materialismo em suas variadas formas de expressão. Essa denúncia é um apelo ao reconhecimento da sacralidade de cada pessoa humana. Já o Concílio Vaticano II afirmou que «a finalidade fundamental da produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro ou o poderio, mas o serviço do homem; do homem integral, isto é, tendo em conta a ordem das suas necessidades materiais e as exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; de qualquer homem ou grupo de homens, de qualquer raça ou região do mundo. A atividade econômica, regulando-se pelas leis e métodos próprios, deve, portanto, exercer-se dentro dos limites da ordem moral para que assim se cumpra o desígnio de Deus sobre o homem» .

É preciso que se compreenda cada vez mais e melhor a realidade, os mecanismos e os interesses que concretamente estão por trás de todo o contexto. Os cristãos e os que, como Igreja, estão à frente desta mobilização pela justiça e pela promoção humana estão obrigados a se manterem informados e esclarecidos.

Não é correto desarticular as atribuições humanas daquelas sobrenaturais (a pessoa elevada pela graça). Não se tratam de realidade estranhas entre elas. Por isso, não se pode compreender a salvação eterna separada ou sem nenhuma ligação com as finalidades terrenas e temporais. Estas não devem ser desprezadas ou ignoradas. Por isso, essa antropologia de cunho dicotômico leva a um reducionismo tendente ao individualismo: salvar almas, ajudá-las a colocar-se na graça de Deus e assim chegar à glória do Paraíso. Essa concepção dicotômica do homem, das finalidades humanas e cristãs levou, de fato teve à exclusão da atividade pastoral da Igreja, toda referência e engajamento na política, tendo em vista a salvação e libertação temporal do homem .

«O amor do homem para com Deus, que se manifestou em Cristo pela salvação, exige de modo inequívoco no traduzir-se em amor oblativo aos irmãos da humanidade com uma predileção pelos mais necessitados. Deve ser um amor verdadeiro, operoso, que não instrumentaliza as pessoas, tanto a indivíduos quanto a estes enquanto grupo social; um amor que coloca em ação processos de promoção humana integral, de humanização plena, de libertação total, sobretudo para os pobres, os marginalizados e oprimidos. O horizonte escatológico não exclui o engajamento terrestre, mas o postula e, mediante a esperança lhe confere um sentido pleno» .

Quando o amor aos necessitados leva um cristão a nem querer falar do problema das estruturas injustas; quando o discurso da partilha e da igualdade ou cria embaraços, ou rejeição profunda, então é bom questionar fraternalmente e até denunciar profeticamente. O serviço aos pobres é promoção integral da pessoa que sofre ou é mero paliativo para tranqüilizar a consciência? O grande zelo, necessário e oportuno, por construir uma sociedade justa e fraterna não pode se eximir de reconhecer que a realidade nunca atingirá um quadro ideal, mesmo que isso, em nenhuma hipótese isente os cristãos de um engajamento efetivo no processo de transformação desta realidade.

2. Um engajamento efetivo na causa da justiça social e a conversão do coração
O consagrado não deve assumir uma postura de ingenuidade diante desta complexidade de problemas e deve estar atento ao que está por trás de certas coisas, as motivações verdadeiras de situações que são profundamente injustas, desumanas e anti-evangélicas. Todos devem se engajar? É preciso que se diga com insistência que sim! O Concílio Vaticano II nos convoca a um engajamento consciente, comprometido: «Todos os cristãos tenham consciência da sua vocação especial e própria na comunidade política; por ela são obrigados a dar exemplo de sentida responsabilidade e dedicação pelo bem comum, de maneira a mostrarem também com fatos como se harmonizam a autoridade e a liberdade, iniciativa pessoal e a solidariedade do inteiro corpo social, a oportuna unidade com a proveitosa diversidade» .

Porém, importa não cair no temporalismo-horizontalista onde a sociologia ou a economia, ou a ciência política esvazia ou sufoca a verticalidade que abre espaço para as realidades eternas, para uma mística que venha a colocar Deus no seu lugar e a partir dele e de uma experiência do seu amor e de sua vontade construir um mundo novo. Nem por outro lado, deve ser enfatizada a dimensão vertical ao ponto de se cair no abstratismo, no espiritualismo desencarnado e na espiritualidade intimista, isolada, alienada, muito fechada em si própria. É preciso dosar bem as coisas, onde uma visão global do plano de salvação permitirá uma certa organicidade que, por sua vez, se abrirá sempre mais à consciência da realidade com sua carga de desafios e problemas, sem deixar-se condicionar por eles. De grande utilidade será haver uma compreensão do contexto em que se atua, à sensibilidade das pessoas, tendo presente as orientações do Magistério, a caridade pastoral e o bom senso, tudo isso iluminado pela maturidade, ciência e pela força da oração .

Esta síntese tão complexa nasce necessariamente de uma mística centrada numa opção fundamental por Cristo e pelo seu evangelho tornado norma de vida, referencial e diretriz fundamental para as outras pequenas e não menos importantes opções cotidianas. Esta poderá ser a forma concreta para evitar toda forma evasiva de sedução provocada pelas ideologias ou direcionamentos que venham a distorcer de alguma forma a práxis do cristão que pela força do Espírito, atualiza a ação e a força transformadora da mensagem de Jesus. «A pobreza evangélica é ao mesmo tempo, crítica ao ativismo, à presunção do homem de construir-se a si mesmo; à soberba de querer construir sem Deus ou contra Deus; ao humanismo ateu; e também crítica ao quietismo; ao pessimismo radical em relação ao homem; ao dolorismo; ao vitimismo; ao sobrenaturalismo; ao milagrismo. A consciência de nossa radical e completa dependência de Deus não nos paralisa, mas nos leva a investir nossos dons e nossas forças na salvação dos irmãos» .

Uma vez que esse encontro com o pobre, essa conversão à pobreza, essa opção pelos pobres constituem a marca de um verdadeiro seguimento de Jesus, importa esclarecer que essa opção não nasce de um revanchismo, mas de Deus que é amor de caridade. Não se trata da rejeição ou de uma consciente antipatia pelos ricos e abastados. A caridade verdadeira a ninguém exclui, mas dá preferência a quem foi excluído por este sistema econômico onde os bens são por demais concentrados, alimentando mecanismos perversos e desumanos. As tantas formas de pobreza não são reduzidas àquela material-econômica. Para tanto, uma conversão corajosa e uma purificação constante constitui uma exigência para os cristãos que querem identificar-se cada dia mais plenamente com o Cristo pobre e com os pobres .

A pobreza dos consagrados não é feita apenas de renúncias para «consolar Jesus», nem feita somente de ascese inspirada na solidariedade com os mais pobres. A pobreza verdadeira é o seguimento do Cristo pobre, servidor de todos, sem excluir ninguém, mas como servidor prioritário dos mais carentes. «A opção privilegiada pelos pobres, longe de ser um sinal de particularismo ou de sectarismo, manifesta a universalidade do ser e da missão da Igreja. Tal opção não é exclusiva nem excludente. É por essa razão que a Igreja não pode exprimi-la com a ajuda de categorias sociológicas e ideológicas redutoras, que fariam de tal preferência uma opção partidária e de natureza conflitiva» . É preciso que não haja ilusões ou uma visão ingênua a respeito de uma postura verdadeiramente cristã diante dos grandes problemas sociais e econômicos. Coube ao Papa Paulo VI ir ao centro da questão quando afirmou que «as melhores estruturas, ou os sistemas melhor idealizados depressa se tornam desumanos, se as tendências inumanas do coração do homem não se acharem purificadas, se não houver uma conversão do coração e do modo de encarar as coisas naqueles que vivem em tais estruturas ou que as comandam» .

Enfim, a pobreza consagrada é uma maneira de possuir que supõe liberdade interior e exterior perante os bens deste mundo, por amor a Cristo e ao Reino, para o serviço dos que necessitam especialmente os mais carentes. «Pobreza, reflitamos mais uma vez, não é rejeição à criação e a seus bens, mas é submeter os bens e a criação à sabedoria superior da cruz. Bens e dons que são devolvidos a Deus, com uma devolução feita de despojamento e de purificação, através do instrumento da cruz de Cristo que é crítica e juízo de todo querer humano que signifique açambarcar para si o que corresponde a Deus e a seus filhos» .

É preciso que os homens e mulheres da Igreja conheçam com precisão o que é a libertação que a Igreja se propõe a abraçar: «A Igreja relaciona mas nunca identifica a libertação humana com a salvação em Jesus Cristo, porque ela sabe por revelação, por experiência histórica e por reflexão de fé que nem todas as noções de libertação são forçosamente coerentes e compatíveis com uma visão evangélica do homem, das coisas e dos acontecimentos; e sabe que não basta instaurar a libertação, criar o bem-estar e impulsionar o desenvolvimento, para se poder dizer que o reino de Deus chegou» . Ora, é preciso que mais ainda os consagrados e sacerdotes conheçam com clareza as próprias atribuições específicas neste processo, distinguindo-as das atribuições dos fieis leigos e leigas.

Por isso, lembra o Papa João Paulo II: «É direito e dever dos pastores propor os princípios morais, também sobre a ordem social, e é dever de todos os cristãos dedicarem-se à defesa dos direitos humanos. A participação ativa nos partidos políticos e reservada aos fiéis leigos» . O envolvimento e as buscas de solução para os problemas sociais e políticos não podem e não devem levar a uma perda de sentido e de identidade no clérigo e no religioso, sobretudo em modalidades de militância que não estejam em sintonia com a sua vocação. Este engajamento significa que a Igreja como um todo não se associa ou se identifica com alguma facção, algum partido, alguma linha, etc. Com relação aos leigos que se engajam diretamente na política, ocorre distinguir as atividades que estes isoladamente ou em grupo desempenham, seja em nome próprio quanto como cidadãos guiados pela própria consciência cristã; é preciso que se distinga isso das atividades que são exercitadas em nome da Igreja e em comunhão com os pastores.

 A Igreja não se confunde de modo algum com a sociedade, nem está ligada a qualquer sistema político determinado. Ela é sinal e a garantia da transcendência da pessoa humana . E serão justamente os sacerdotes e consagrados que representarão mais nitidamente esta defesa que a Igreja se propõe a fazer da transcendência da pessoa humana. E isso não seria possível se ela desenvolvesse uma tendência partidária entre estes homens e mulheres consagrados, consagradas e ordenados, chamados a ser sinais de comunhão e de unidade. Por isso o sumo pontífice lembra: «Sois sacerdotes e religiosos; não sois líderes sociais, líderes políticos ou funcionários de um poder temporal. Por isso vos repito: não tenhamos a ilusão de servir ao Evangelho se permitirmos que o nosso carisma se “dilua” através de um exagerado interesse pelo vasto campo dos problemas temporais» .

Por isso, os cristãos engajados, os sacerdotes, os religiosos e religiosas, as pessoas consagradas devem discernir e vigiar atentamente para que não venham a ser manipulados pelas ideologias sutis e enganosas dos resultados imediatos, das ilusões tantas vezes bem elaboradas dos efeitos satisfatórios, de certas transformações profundas que se desdobrarão na força de certos elementos e estruturas somente humanas, etc. Por isso, ensina Paulo: «Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganosas especulações da filosofia, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo» . E será a cruz de Cristo, o grande sinal desta síntese tão necessária e eficaz para mudar, transfigurar e oferecer ao Pai este mundo.

Pe. Antônio Marcos Chagas

Fonte: Comunidade Católica Shalom


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