Formação

A Esperança segundo os Primeiros Cristãos

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O conceito de esperança baseada sobre a fé no Novo Testamento e na Igreja primitiva

Antes de enfrentar a questão de saber se também para nós o encontro com aquele Deus que, em Cristo, nos mostrou a sua Face e abriu o seu Coração poderá ser « performativo » e não somente « informativo », ou seja, se poderá transformar a nossa vida a ponto de nos fazer sentir redimidos através da esperança que o mesmo exprime, voltemos de novo à Igreja primitiva. Não é difícil notar como a experiência da humilde escrava africana Bakhita foi também a experiência de muitas pessoas maltratadas e condenadas à escravidão no tempo do cristianismo nascente. O cristianismo não tinha trazido uma mensagem sócio-revolucionária semelhante à de Espártaco que tinha fracassado após lutas cruentas. Jesus não era Espártaco, não era um guerreiro em luta por uma libertação política, como Barrabás ou Bar-Kochba. Aquilo que Jesus – Ele mesmo morto na cruz – tinha trazido era algo de totalmente distinto: o encontro com o Senhor de todos os senhores, o encontro com o Deus vivo e, deste modo, o encontro com uma esperança que era mais forte do que os sofrimentos da escravatura e, por isso mesmo, transformava a partir de dentro a vida e o mundo. A novidade do que tinha acontecido revela-se, com a máxima evidência, na Carta de São Paulo a Filémon. Trata-se de uma carta, muito pessoal, que Paulo escreve no cárcere e entrega ao escravo fugitivo Onésimo para o seu patrão – precisamente Filémon. É verdade, Paulo envia de novo o escravo para o seu patrão, de quem tinha fugido, e fá-lo não impondo, mas suplicando: « Venho pedir-te por Onésimo, meu filho, que gerei na prisão […]. De novo to enviei e tu torna a recebê-lo, como às minhas entranhas […]. Talvez ele se tenha apartado de ti por algum tempo, para que tu o recobrasses para sempre, não já como escravo, mas, em vez de escravo, como irmão muito amado » (Flm 10-16). Os homens que, segundo o próprio estado civil, se relacionam entre si como patrões e escravos, quando se tornaram membros da única Igreja passaram as ser entre si irmãos e irmãs – assim se tratavam os cristãos mutuamente. Em virtude do Baptismo, tinham sido regenerados, tinham bebido do mesmo Espírito e recebiam conjuntamente, um ao lado do outro, o Corpo do Senhor. Apesar de as estruturas externas permanecerem as mesmas, isto transformava a sociedade a partir de dentro. Se a Carta aos Hebreus diz que os cristãos não têm aqui neste mundo uma morada permanente, mas procuram a futura (cf. Heb 11, 13-14; Fil 3,20), isto não significa de modo algum adiar para uma perspectiva futura: a sociedade presente é reconhecida pelos cristãos como uma sociedade imprópria; eles pertencem a uma sociedade nova, rumo à qual caminham e que, na sua peregrinação, é antecipada.

5. Devemos acrescentar ainda um outro ponto de vista. A Primeira Carta aos Coríntios (1,18-31) mostra-nos que uma grande parte dos primeiros cristãos pertencia às classes baixas da sociedade e, por isso mesmo, se sentia livre para a experiência da nova esperança, como constatámos no exemplo de Bakhita. Porém, já desde os começos, havia também conversões nas classes aristocráticas e cultas, visto que também estas viviam « sem esperança e sem Deus no mundo ». O mito tinha perdido a sua credibilidade; a religião romana de Estado tinha-se esclerosado em mero cerimonial, que se realizava escrupulosamente, mas reduzido já simplesmente a uma « religião política ». O racionalismo filosófico tinha relegado os deuses para o campo do irreal. O Divino era visto de variados modos nas forças cósmicas, mas um Deus a Quem se podia rezar não existia. Paulo ilustra, de forma absolutamente apropriada, a problemática essencial da religião de então, quando contrapõe à vida « segundo Cristo » uma vida sob o domínio dos « elementos do mundo » (Col 2,8). Nesta perspectiva, pode ser esclarecedor um texto de São Gregório Nazianzeno. Diz ele que, no momento em que os magos guiados pela estrela adoraram Cristo, o novo rei, deu-se por encerrada a astrologia, pois agora as estrelas giram segundo a órbita determinada por Cristo [2] De facto, nesta cena fica invertida a concepção do mundo de então, que hoje, de um modo distinto, aparece de novo florescente. Não são os elementos do cosmo, as leis da matéria que, no fim das contas, governam o mundo e o homem, mas é um Deus pessoal que governa as estrelas, ou seja, o universo; as leis da matéria e da evolução não são a última instância, mas razão, vontade, amor: uma Pessoa. E se conhecemos esta Pessoa e Ela nos conhece, então verdadeiramente o poder inexorável dos elementos materiais deixa de ser a última instância; deixámos de ser escravos do universo e das suas leis, então somos livres. Tal consciência impeliu na antiguidade os ânimos sinceros a indagar. O céu não está vazio. A vida não é um simples produto das leis e da casualidade da matéria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo há uma vontade pessoal, há um Espírito que em Jesus Se revelou como Amor.[3]

6. Os sarcófagos dos primórdios do cristianismo ilustram visivelmente esta concepção (com a morte diante dos olhos a questão do significado da vida torna-se inevitável). A figura de Cristo é interpretada, nos antigos sarcófagos, sobretudo através de duas imagens: a do filósofo e a do pastor. Em geral, por filosofia não se entendia então uma difícil disciplina académica, tal como ela se apresenta hoje. O filósofo era antes aquele que sabia ensinar a arte essencial: a arte de ser rectamente homem, a arte de viver e de morrer. Certamente, já há muito tempo que os homens se tinham apercebido de que boa parte dos que circulavam como filósofos, como mestres de vida, não passavam de charlatães que com suas palavras granjeavam dinheiro, enquanto sobre a verdadeira vida nada tinham a dizer. Isto era mais uma razão para se procurar o verdadeiro filósofo que soubesse realmente indicar o itinerário da vida. Quase ao fim do século terceiro, encontramos pela primeira vez em Roma, no sarcófago de um menino e no contexto da ressurreição de Lázaro, a figura de Cristo como o verdadeiro filósofo que, numa mão, segura o Evangelho e, na outra, o bastão do viandante, próprio do filósofo. Com este bastão, Ele vence a morte; o Evangelho traz a verdade que os filósofos peregrinos tinham buscado em vão. Nesta imagem, que sucessivamente por um longo período havia de perdurar na arte dos sarcófagos, torna-se evidente aquilo que tanto as pessoas cultas como as simples encontravam em Cristo: Ele diz-nos quem é na realidade o homem e o que ele deve fazer para ser verdadeiramente homem. Ele indica-nos o caminho, e este caminho é a verdade. Ele mesmo é simultaneamente um e outra, sendo por isso também a vida de que todos nós andamos à procura. Ele indica ainda o caminho para além da morte; só quem tem a possibilidade de fazer isto é um verdadeiro mestre de vida. O mesmo se torna visível na imagem do pastor. Tal como sucedia com a representação do filósofo, assim também na figura do pastor a Igreja primitiva podia apelar-se a modelos existentes da arte romana. Nesta, o pastor era, em geral, expressão do sonho de uma vida serena e simples de que as pessoas, na confusão da grande cidade, sentiam saudade. Agora a imagem era lida no âmbito de um novo cenário que lhe conferia um conteúdo mais profundo: « O Senhor é meu pastor, nada me falta […] Mesmo que atravesse vales sombrios, nenhum mal temerei, porque estais comigo » (Sal 23[22], 1.4). O verdadeiro pastor é Aquele que conhece também o caminho que passa pelo vale da morte; Aquele que, mesmo na estrada da derradeira solidão, onde ninguém me pode acompanhar, caminha comigo servindo-me de guia ao atravessá-la: Ele mesmo percorreu esta estrada, desceu ao reino da morte, venceu-a e voltou para nos acompanhar a nós agora e nos dar a certeza de que, juntamente com Ele, acha-se uma passagem. A certeza de que existe Aquele que, mesmo na morte, me acompanha e com o seu « bastão e o seu cajado me conforta », de modo que « não devo temer nenhum mal » (cf. Sal 23[22],4): esta era a nova « esperança » que surgia na vida dos crentes.

7. Devemos voltar, uma vez mais, ao Novo Testamento. No décimo primeiro capítulo da Carta aos Hebreus (v. 1), encontra-se, por assim dizer, uma certa definição da fé que entrelaça estreitamente esta virtude com a esperança. À volta da palavra central desta frase começou a gerar-se desde a Reforma, uma discussão entre os exegetas, mas que parece hoje encaminhar-se para uma interpretação comum. Por enquanto, deixo o termo em questão sem traduzir. A frase soa, pois, assim: « A fé é hypostasis das coisas que se esperam; prova das coisas que não se vêem ». Para os Padres e para os teólogos da Idade Média era claro que a palavra grega hypostasis devia ser traduzida em latim pelo termo substantia. De facto, a tradução latina do texto, feita na Igreja antiga, diz: « Est autem fides sperandarum substantia rerum, argumentum non apparentium – a fé é a “substância” das coisas que se esperam; a prova das coisas que não se vêem ». Tomás de Aquino,[4] servindo-se da terminologia da tradição filosófica em que se encontra, explica: a fé é um « habitus », ou seja, uma predisposição constante do espírito, em virtude do qual a vida eterna tem início em nós e a razão é levada a consentir naquilo que não vê. Deste modo, o conceito de « substância » é modificado para significar que pela fé, de forma incoativa – poderíamos dizer « em gérmen » e portanto segundo a « substância » – já estão presentes em nós as coisas que se esperam: a totalidade, a vida verdadeira. E precisamente porque a coisa em si já está presente, esta presença daquilo que há-de vir cria também certeza: esta « coisa » que deve vir ainda não é visível no mundo externo (não « aparece »), mas pelo facto de a trazermos, como realidade incoativa e dinâmica dentro de nós, surge já agora uma certa percepção dela. Para Lutero, que não nutria muita simpatia pela Carta aos Hebreus em si própria, o conceito de « substância », no contexto da sua visão da fé, nada significava. Por isso, interpretou o termo hipóstase/substância não no sentido objectivo (de realidade presente em nós), mas no subjectivo, isto é, como expressão de uma atitude interior e, consequentemente, teve naturalmente de entender também o termo argumentum como uma disposição do sujeito. No século XX, esta interpretação impôs-se também na exegese católica – pelo menos na Alemanha – de modo que a tradução ecuménica em alemão do Novo Testamento, aprovada pelos Bispos diz: « Glaube aber ist: Feststehen in dem, was man erhofft, Überzeugtsein von dem, was man nicht sieht » (fé é: permanecer firmes naquilo que se espera, estar convencidos daquilo que não se vê). Em si mesmo, isto não está errado; mas não é o sentido do texto, porque o termo grego usado (elenchos) não tem o valor subjectivo de « convicção », mas o valor objectivo de « prova ». Com razão, pois, a recente exegese protestante chegou a uma convicção diversa: « Agora, porém, já não restam dúvidas de que esta interpretação protestante, tida como clássica, é insustentável ».[5] A fé não é só uma inclinação da pessoa para realidades que hão-de vir, mas estão ainda totalmente ausentes; ela dá-nos algo. Dá-nos já agora algo da realidade esperada, e esta realidade presente constitui para nós uma « prova » das coisas que ainda não se vêem. Ela atrai o futuro para dentro do presente, de modo que aquele já não é o puro « ainda-não ». O facto de este futuro existir, muda o presente; o presente é tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se naquelas presentes e as presentes nas futuras.

8. Esta explicação fica ainda mais reforçada e aplicada à vida concreta, se considerarmos o versículo 34 do décimo capítulo da Carta aos Hebreus que, sob o aspecto da língua e do conteúdo, tem a ver com esta definição de uma fé perpassada de esperança e prepara-a. No texto, o autor fala aos crentes que viveram a experiência da perseguição, dizendo-lhes: « Não só vos compadecestes dos encarcerados, mas aceitastes com alegria a confiscação dos vossos bens (hyparchonton – Vg: bonorum), sabendo que possuís uma riqueza melhor (hyparxin – Vg: substantiam) e imperecível ». Hyparchonta são as propriedades, aquilo que na vida terrena constitui a sustentação, precisamente a base, a « substância » da qual se necessita para viver. Esta « substância », a segurança normal para a vida, foi tirada aos cristãos durante a perseguição. Eles suportaram-no, porque em todo o caso consideravam transcurável esta substância material. Podiam prescindir dela, porque tinham achado uma « base » melhor para a sua existência – uma base que permanece e que ninguém lhes pode tirar. Não é possível deixar de ver a ligação existente entre estas duas espécies de « substância », entre a sustentação ou base material e a afirmação da fé como « base », como « substância » que permanece. A fé confere à vida uma nova base, um novo fundamento, sobre o qual o homem se pode apoiar, e consequentemente, o fundamento habitual, ou seja a confiança na riqueza material, relativiza-se. Cria-se uma nova liberdade diante deste fundamento da vida que só aparentemente é capaz de sustentar, embora o seu significado normal não seja certamente negado com isso. Esta nova liberdade, a consciência da nova « substância » que nos foi dada, ficou patente no martírio, quando as pessoas se opuseram à prepotência da ideologia e dos seus órgãos políticos e, com a sua morte, renovaram o mundo. Mas não é só no martírio… Aquela manifestou-se sobretudo nas grandes renúncias a começar dos monges da antiguidade até Francisco de Assis e às pessoas do nosso tempo que, nos Institutos e Movimentos religiosos actuais, deixaram tudo para levar aos homens a fé e o amor de Cristo, para ajudar as pessoas que sofrem no corpo e na alma. Aqui a nova « substância » confirmou-se realmente como « substância »: da esperança destas pessoas tocadas por Cristo brotou esperança para outros que viviam na escuridão e sem esperança. Ficou demonstrado que esta nova vida possui realmente « substância » e é « substância » que suscita vida para os outros. Para nós, que vemos tais figuras, este seu actuar e viver é, de facto, uma « prova » de que as coisas futuras, ou seja, a promessa de Cristo não é uma realidade apenas esperada, mas uma verdadeira presença: Ele é realmente o « filósofo » e o « pastor » que nos indica o que seja e onde está a vida.

9. Para compreender mais profundamente esta reflexão sobre as duas espécies de substâncias – hypostasis e hyparchonta – e sobre as duas maneiras de viver que com elas se exprimem, devemos reflectir ainda brevemente sobre duas palavras referentes ao assunto, que se encontram no décimo capítulo da Carta aos Hebreus. Trata-se das palavras hypomone (10,36) e hypostole (10,39). Hypomone traduz-se normalmente por « paciência », perseverança, constância. Este saber esperar, suportando pacientemente as provas, é necessário para o crente poder « obter as coisas prometidas » (cf. 10,36). Na religiosidade do antigo judaísmo, esta palavra era usada expressamente para a espera de Deus, característica de Israel, para este perseverar na fidelidade a Deus, na base da certeza da Aliança, num mundo que contradiz a Deus. Sendo assim, a palavra indica uma esperança vivida, uma vida baseada na certeza da esperança. No Novo Testamento, esta espera de Deus, este estar da parte de Deus assume um novo significado: é que em Cristo, Deus manifestou-Se. Comunicou-nos já a « substância » das coisas futuras, e assim a espera de Deus adquire uma nova certeza. É espera das coisas futuras a partir de um dom já presente. É espera – na presença de Cristo, isto é, com Cristo presente – que se completa no seu Corpo, na perspectiva da sua vinda definitiva. Diversamente com hypostole, exprime-se o esquivar-se de alguém que não ousa dizer, abertamente e com franqueza, a verdade talvez perigosa. Este dissimular por espírito de temor diante dos homens, conduz à « perdição » (Heb 10,39). Pois, « Deus não nos deu um espírito de timidez, mas de fortaleza, amor e sabedoria », lê-se na Segunda Carta a Timóteo (1,7) caracterizando assim, com uma bela expressão, a atitude fundamental do cristão.

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Papa Bento XVI
Encíclica Spe Salvi, par 4 a 9


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