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Exegese do domingo da Páscoa

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Tema do Domingo de Páscoa
A liturgia deste domingo celebra a ressurreição e garante-nos que a vida em plenitude resulta de uma existência feita dom e serviço em favor dos irmãos. A ressurreição de Cristo é o exemplo concreto que confirma tudo isto.

A primeira leitura apresenta o exemplo de Cristo que “passou pelo mundo fazendo o bem” e que, por amor, Se deu até à morte; por isso, Deus ressuscitou-O. Os discípulos, testemunhas desta dinâmica, devem anunciar este “caminho” a todos os homens.

O Evangelho coloca-nos diante de duas atitudes face à ressurreição: a do discípulo obstinado, que se recusa a aceitá-la porque, na sua lógica, o amor total e a doação da vida nunca podem ser geradores de vida nova; e a do discípulo ideal, que ama Jesus e que, por isso, entende o seu caminho e a sua proposta (a esse não o escandaliza nem o espanta que da cruz tenha nascido a vida plena, a vida verdadeira).

A segunda leitura convida os cristãos, revestidos de Cristo pelo batismo, a continuarem a sua caminhada de vida nova até à transformação plena (que acontecerá quando, pela morte, tivermos ultrapassado a última barreira da nossa finitude).

LEITURA I – Ato 10,34a.37-43
AMBIENTE
A obra de Lucas (Evangelho e Atos dos Apóstolos) aparece entre os anos 80 e 90, numa fase em que a Igreja já se encontra organizada e estruturada, mas em que começam a surgir “mestres” pouco ortodoxos, com propostas doutrinais estranhas e, às vezes, pouco cristãs. Neste ambiente, as comunidades cristãs começam a necessitar de critérios claros que lhes permitam discernir a verdadeira doutrina de Jesus, da falsa doutrina dos falsos mestres.

Lucas apresenta, então, a Palavra de Jesus, transmitida pelos apóstolos sob o impulso do Espírito Santo: é essa Palavra que contém a proposta libertadora que Deus quer apresentar aos homens. Nos Atos, em especial, Lucas mostra como a Igreja nasce da Palavra de Jesus, fielmente anunciada pelos apóstolos; será esta Igreja, animada pelo Espírito, fiel à doutrina transmitida pelos apóstolos, que tornará presente o plano salvador do Pai e o fará chegar a todos os homens.
Neste texto, em concreto, Lucas propõe-nos o testemunho e a catequese de Pedro em Cesareia, em casa do centurião romano Cornélio. Convocado pelo Espírito (cf. Ato 10,19-20), Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial da fé e batiza-o, bem como a toda a sua família (cf. Ato 10,23b-48). O episódio é importante porque Cornélio é o primeiro pagão a cem por cento a ser admitido ao cristianismo por um dos Doze (o etíope de que se fala em Ato 8,26-40 já era “prosélito”, isto é, simpatizante do judaísmo). Significa que a vida nova que nasce de Jesus é para todos os homens.

MENSAGEM
O nosso texto é uma composição lucana, onde ecoa o “kerigma” primitivo. Pedro começa por anunciar Jesus como “o ungido”, que tem o poder de Deus (vers. 38a); depois, descreve a Atividade de Jesus, que “passou fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos” (vers. 38b); em seguida, dá testemunho da morte de Jesus na cruz (vers. 39) e da sua ressurreição (vers. 40); finalmente, Pedro tira as conclusões acerca da dimensão salvífica de tudo isto (vers. 43b: “quem acredita n’Ele, recebe, pelo seu nome, a remissão dos pecados”). Esta catequese refere também, com alguma insistência, o testemunho dos discípulos que acompanharam, a par e passo, a caminhada histórica de Jesus (vers. 39a.41.42).

Repare-se como a ressurreição de Jesus não é apresentada como um fAtoo isolado, mas como o culminar de uma vida vivida na obediência ao Pai e na doação aos homens. Depois de Jesus ter passado pelo mundo “fazendo o bem e libertando todos os que eram oprimidos”; depois de Ele ter morrido na cruz como consequência desse “caminho”, Deus ressuscitou-O. A vida nova e plena que a ressurreição significa, parece ser o ponto de chegada de uma existência posta ao serviço do projecto salvador e libertador de Deus. Por outro lado, esta vida vivida na entrega e no dom é uma proposta transformadora que, uma vez acolhida, liberta da escravidão do egoísmo e do pecado (vers. 43).

E os discípulos? Eles são aqueles que aderiram a Jesus e que acolheram a sua proposta libertadora. Se a vida dos discípulos se identifica com a de Jesus, eles estão a “ressuscitar” (isto é, a renascer para a vida nova e plena). Além disso, eles são as testemunhas de tudo isto: é absolutamente necessário que esta proposta de ressurreição, de vida plena, de vida transfigurada, chegue a todos os homens. Trata-se de uma proposta de salvação universal que, através dos discípulos, deve atingir, todos os povos da terra, sem distinção. Os acontecimentos do dia do Pentecostes já haviam, aliás, anunciado a universalidade da proposta de salvação, apresentada por Jesus e testemunhada pelos apóstolos.

ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode partir das seguintes coordenadas:
• A ressurreição de Jesus é a consequência de uma vida gasta a “fazer o bem e a libertar os oprimidos”. Isso significa que, sempre que alguém – na linha de Jesus – se esforça por vencer o egoísmo, a mentira, a injustiça e por fazer triunfar o amor, está a ressuscitar; significa que, sempre que alguém – na linha de Jesus – se dá aos outros e manifesta, em gestos concretos, a sua entrega aos irmãos, está a construir vida nova e plena. Eu estou a ressuscitar (porque caminho pelo mundo fazendo o bem e libertando os oprimidos), ou a minha vida é um repisar os velhos esquemas do egoísmo, do orgulho, do comodismo?
• A ressurreição de Jesus significa, também, que o medo, a morte, o sofrimento, a injustiça, deixam de ter poder sobre o homem que ama, que se dá, que partilha a vida. Ele tem assegurada a vida plena – essa vida que os poderes do mundo não podem destruir, atingir ou restringir. Ele pode, assim, enfrentar o mundo com a serenidade que lhe vem da fé. Estou consciente disto, ou deixo-me dominar pelo medo, sempre que tenho de agir para combater aquilo que rouba a vida e a dignidade, a mim e a cada um dos meus irmãos?
• Aos discípulos pede-se que sejam as testemunhas da ressurreição. Nós não vimos o sepulcro vazio; mas fazemos, todos os dias, a experiência do Senhor ressuscitado, que está vivo e que caminha ao nosso lado nos caminhos da história. A nossa missão é testemunhar essa realidade; no entanto, o nosso testemunho será oco e vazio se o nosso testemunho não for comprovado pelo amor e pela doação (as marcas da vida nova de Jesus).
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 117 (118)
LEITURA II – Col 3,1-4
AMBIENTE
Quando escreveu a Carta aos Colossenses, Paulo estava na prisão (em Roma?). Epafras, seu amigo, visitou-o e falou-lhe da “crise” por que estava a passar a Igreja de Colossos. Alguns doutores locais ensinavam doutrinas estranhas, que misturavam especulações acerca dos anjos (cf. Col 2,18), práticas ascéticas, rituais legalistas, prescrições sobre os alimentos e a observância de determinadas festas (cf. Col 2,16.21): tudo isso deveria (na opinião desses “mestres”) completar a fé em Cristo, comunicar aos crentes um conhecimento superior de Deus e dos mistérios cristãos e possibilitar uma vida religiosa mais autêntica. Contra este sincretismo religioso, Paulo afirma a absoluta suficiência de Cristo.
O texto que nos é proposto como segunda leitura é a introdução à reflexão moral da carta (cf. Col 3,1-4,6). Depois de apresentar a centralidade de Cristo no projecto salvador de Deus (cf. Col 1,13-2,23), Paulo recorda aos cristãos de Colossos que é preciso viver de forma coerente e verdadeiro o compromisso assumido com Cristo.

MENSAGEM
Neste texto, Paulo apresenta, como ponto de partida e base da vida cristã, a união com Cristo ressuscitado, na qual o cristão é introduzido pelo batismo. Ao ser batizado, o cristão morreu para o pecado e renasceu para uma vida nova, que terá a sua manifestação gloriosa quando ultrapassarmos, pela morte, as fronteiras da nossa vida terrena. Enquanto caminhamos ao encontro desse objetivo último, a nossa vida tem de tender para Cristo. Em concreto, isso significa despojarmo-nos do “homem velho” por um processo de conversão que nunca está acabado, e o revestirmo-nos – cada dia mais profundamente – da imagem de Cristo, de forma a que nos identifiquemos com Ele pelo amor e pela entrega da vida.
No texto de Paulo está bem presente a ideia de que temos que viver com os pés na terra, mas com a mente e o coração no céu: é lá que estão os bens eternos e a nossa meta definitiva (“afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra”). Daqui resulta um conjunto de exigências práticas que Paulo vai enumerar, de forma bem concreta, nos versículos seguintes (cf. Col 3,5-4,1).
ATUALIZAÇÃO
Considerar as seguintes questões, na reflexão:
• O batismo introduz-nos numa dinâmica de comunhão com Cristo ressuscitado. Tenho consciência de que o meu batismo significou um compromisso com Cristo? Quando, de alguma forma, tenho um papel Ativo na preparação ou na celebração do sacramento do batismo, tenho consciência – e procuro passar essa mensagem – de que o sacramento não é um Ato tradicional ou social (que, por acaso, até proporciona fotografias bonitas), mas um compromisso sério e exigente com Cristo?
• A minha vida tem sido uma caminhada coerente com esta dinâmica de vida nova que começou no dia em que fui batizado? Esforço-me, realmente, por me despojar do “homem velho”, egoísta e escravo do pecado, e por me revestir do “homem novo”, que se identifica com Cristo e que vive no amor, no serviço, na doação aos irmãos?
EVANGELHO – Jo 20,1-9
AMBIENTE
Na primeira parte do Quarto Evangelho (cf. Jo 4,1-19,42), João descreve a Atividade criadora e vivificadora do Messias (o último passo dessa Atividade destinada a fazer surgir o Homem Novo é, precisamente, a morte na cruz: aí, Jesus apresenta a última e definitiva lição – a lição do amor total, que não guarda nada para si, mas faz da sua vida um dom radical ao Pai e aos irmãos); na segunda parte (cf. Jo 20,1-31), João apresenta o resultado da ação de Jesus: a comunidade de Homens Novos, recriados e vivificados por Jesus, que com Ele aprenderam a amar com radicalidade. Trata-se dessa comunidade de homens e mulheres que se converteram e aderiram a Jesus e que, em cada dia – mesmo diante do sepulcro vazio – são convidados a manifestar a sua fé n’Ele.
MENSAGEM
O texto começa com uma indicação aparentemente cronológica, mas que deve ser entendida sobretudo em chave teológica: “no primeiro dia da semana”. Significa que começou um novo ciclo – o da nova criação, o da Páscoa definitiva. Aqui começa um novo tempo, o tempo do homem novo, que nasce a partir da doação de Jesus.
A primeira personagem em cena é Maria Madalena: ela é a primeira a dirigir-se ao túmulo de Jesus, ainda o sol não tinha nascido, na manhã do “primeiro dia da semana”. Ela representa a nova comunidade que nasceu da ação criadora e vivificadora do Messias; essa nova comunidade, testemunha da cruz, acredita – inicialmente – que a morte triunfou e vai procurar Jesus no sepulcro: é uma comunidade perdida, desorientada, insegura, desamparada, que ainda não conseguiu descobrir que a morte foi derrotada; mas, diante do sepulcro vazio, a nova comunidade apercebe-se de que a morte não venceu e que Jesus continua vivo.
Na sequência, João apresenta uma catequese sobre a dupla atitude dos discípulos diante do mistério da morte e da ressurreição de Jesus. Essa dupla atitude é expressa no comportamento de dois discípulos que, na manhã da Páscoa, correm ao túmulo de Jesus: Simão Pedro e um “outro discípulo” não identificado (mas que parece ser esse “discípulo amado”, apresentado no Quarto Evangelho como modelo ideal do discípulo).
João coloca, aliás, estas duas figuras lado a lado em várias circunstâncias (na última ceia, é o “discípulo amado” que percebe quem está do lado de Jesus e quem O vai trair – cf. Jo 13,23-25; na paixão, é ele que consegue estar perto de Jesus no átrio do sumo sacerdote, enquanto Pedro O trai – cf. Jo 18,15-18.25-27; é ele que está junto da cruz quando Jesus morre – cf. Jo 19,25-27); é ele quem reconhece Jesus ressuscitado nesse vulto que aparece aos discípulos no lago de Tiberíades – cf. Jo 21,7). Nas outras vezes, o “discípulo amado” levou sempre vantagem sobre Pedro. Aqui, isso irá acontecer outra vez: o “outro discípulo” correu mais e chegou ao túmulo primeiro que Pedro (o fato de se dizer que ele não entrou logo pode querer significar a sua deferência e o seu amor, que resultam da sua sintonia com Jesus); e, depois de ver, “acreditou” (o mesmo não se diz de Pedro).
Provavelmente, o autor do Quarto Evangelho quis descrever, através destas figuras, o impacto produzido nos discípulos pela morte de Jesus e as diferentes disposições existentes entre os membros da comunidade cristã. Em geral Pedro representa, nos Evangelhos, o discípulo obstinado, para quem a morte significa fracasso e que se recusa a aceitar que a vida nova passe pela humilhação da cruz (Jo 13,6-8.36-38; 18,16.17.18.25-27; cf. Mc 8,32-33; Mt 16,22-23). Ao contrário, o “outro discípulo” é o “discípulo amado”, que está sempre próximo de Jesus, que faz a experiência do amor de Jesus; por isso, corre ao seu encontro de forma mais decidida e “percebe” – porque só quem ama muito percebe certas coisas que passam despercebidas aos outros – que a morte não pôs fim à vida.
Esse “outro discípulo” é, portanto, a imagem do discípulo ideal, que está em sintonia total com Jesus, que corre ao seu encontro com um total empenho, que compreende os sinais e que descobre (porque o amor leva à descoberta) que Jesus está vivo. Ele é o paradigma do Homem Novo, do homem recriado por Jesus.

ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode partir dos seguintes dados:
• A lógica humana vai na linha da figura representada por Pedro: o amor partilhado até à morte, o serviço simples e sem pretensões, a entrega da vida, só conduzem ao fracasso e não são um caminho sólido e consistente para chegar ao êxito, ao triunfo, à glória; da cruz, do amor radical, da doação de si, não pode resultar realização, felicidade, vida plena. É verdade que é esta a perspectiva da cultura dominante; é verdade que é esta a perspectiva de muitos cristãos (representados na figura de Simão Pedro). Como me situo face a isto?
• A ressurreição de Jesus prova, precisamente, que a vida plena, a vida total, a transfiguração total da nossa realidade finita e das nossas capacidades limitadas passa pelo amor que se dá, com radicalidade, até às últimas consequências. Tenho consciência disso? É nessa direção que conduzo a caminhada da minha vida?
• Pela fé, pela esperança, pelo seguimento de Cristo e pelos sacramentos, a semente da ressurreição (o próprio Jesus) é depositada na realidade do homem/corpo. Revestidos de Cristo, somos nova criatura: estamos, portanto, a ressuscitar, até atingirmos a plenitude, a maturação plena, a vida total (quando ultrapassarmos a barreira da morte física). Aqui começa, pois, a nova humanidade.
• A figura de Pedro pode também representar, aqui, essa velha prudência dos responsáveis institucionais da Igreja, que os impede de ir à frente da caminhada do Povo de Deus, de arriscar, de aceitar os desafios, de aderir ao novo, ao desconcertante, ao incompreensível. O Evangelho de hoje sugere que é, precisamente aí que, tantas vezes, se revela o mistério de Deus e se encontram ecos de ressurreição e de vida nova.
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