Formação

Os Verbos de Ligação

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Escrito por Breno Alves

Arrumando meus velhos livros de estudante ginasial, empoeirados e esquecidos na pequena estante da sala, descobri um texto que, a uma altura de dez anos, me fez perceber quanta riqueza humana se esconde nas entrelinhas capaz de transformar uma historieta juvenil em uma fonte insondável de sabedoria. Era o conto Serespaperconfi, de Pedro Bandeira, com o qual já havia me deliciado antes e que agora ganha um sabor novo quando contrastado com a realidade afetiva dos tantos jovens de hoje. Fala da vida de quatro meninas que, embaladas pelas festinhas de sábado à noite, procuram ao máximo ficar com os gatinhos da escola para depois repassarem entre si os momentos mais envolventes, num ritmo de gostosa fofoca. Todas são bastante experientes, menos a introspectiva Marina que, nova na trupe, ainda não se habituou ao fulgor das outras e nunca experimentou o transe de uma boa ficada. As outras, num primeiro momento surpresas, decidem, então, lançá-la nos braços do mais novo galã da escola, amante do violão e transferido de uma cidade do interior, iniciando-a nas artes da paquera, ignorantes do fato de que esse mesmo rapaz já esquentara o coração de Marina. No apartamento de uma delas, tudo é arranjado: a roupa mais transada, a música mais romântica, o clima mais agradável. O coração da pobre Marina dando sobressaltos e suas amigas, empolgadas, marcando o lanche num bar ali perto, esperando o fim da ficada para saberem de tudo. Enfim, o rapaz, Renato, chega, e os dois, na penumbra gostosa daquele fim de tarde de inverno, com aquela música suave ao fundo, vão se descobrindo em carícias, até que, num sobressalto, Marina breca tudo e foge, entre atarantada e envergonhada, para incógnita de Renato e das meninas.

O comportamento de Marina assombra a todos eles, mas a faz refletir em seu coração a profundidade do seu sentimento por Renato, descobrindo em si a pureza de um amor que deseja não uma ficada, mas uma entrega total e resoluta. Renato, para quem aquela quase-ficada deveria ser esquecida, assusta-se pelo fato de Marina não sair de seu pensamento. Procurando-a, descobre nela a sinceridade do afeto e indaga-lhe seu segredo. Ela, sacando de uma gramática, ensina-lhe a sabedoria dos verbos de ligação.

Para quem não gosta muito de gramática, é bom relembrarmos o que são os verbos de ligação. Estes são os que ligam o sujeito da frase a uma palavra que lhe qualifica, indicando um estado ou uma característica que lhe são próprios. Tal palavra é o predicativo do sujeito. A grandiosidade do conto reside quando fazemos o paralelo dele com a afetividade dos adolescentes de hoje, marcada pelo “ficar”, pelo transitório, pelo descartável, profundamente deslocada e fonte de inúmeras feridas. Tomando ao pé da letra, poderíamos expor, à luz do ensinamento gramático acima, a teoria do relacionamento ideal para os jovens de hoje. O sujeito, ou melhor, os sujeitos (haja vista que, no namoro, o sujeito é composto) são aqueles que encontram entre si afinidades bastantes para ficarem juntos, a ponto de iniciar uma relação. O predicativo seria, como já dito, aquilo que os qualifica (e santifica), enquanto seres humanos e dotados da graça da filiação a Deus. Ora, o melhor qualificativo dos cristãos é a própria Trindade que, em constante e perpétua relação de amor, ensina aos seus a profundidade da descoberta do outro enquanto conseqüência e causa de si mesmo. O verbo de ligação é aquilo que une os dois, sujeito e predicativo, fazendo-os imagem e semelhança, para que a Graça que impera no segundo seja o sustentáculo da química do primeiro. Pronto, temos a oração perfeita! Ops, oração é palavra chave… Quando, na intimidade do namoro colocamos a estatura de Deus como objetivo de santidade e castidade, pela via da intimidade e da escuta, temos esta relação de amor contínua, traduzida em forma de constante oração.

Marina, apresentando a gramática a Renato, diz que não deseja apenas ficar com ele, mas ser dele, estar com ele, parecer ser dele, permanecer com ele, continuar com ele… Usando, enfim, de todos os verbos de ligação, mostra a via estreita do verdadeiro amor, que deve, sob a inspiração de Cristo, ser alicerçada na verdade e na busca do verdadeiro sentido da afetividade. Num texto encontrado no portal da Renovação Carismática do Brasil, encontrei esta frase conclusiva: “Namorar é dialogar!” Na relação de entrega que os filhos fazem ao Pai, da sua vida amorosa e da missão que essa relação resume, há a concordância de afeto e a purificação de intenções, mostrando-se a verdadeira missão do conviver e do amor esponsal.

O catecismo da Igreja nos diz que “Deus, que criou o homem por amor, também o chamou para o amor, vocação fundamental e inata de todo ser humano. Pois o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, que é Amor” (CIC 1604). Ajuntar ao seio da relação a honrosa presença de Deus é atestar na vida em comum a vontade de elevar o amor à dimensão divina, colocando o Senhor na intimidade mesma do casal, como elemento que o cimenta. Disso depreende-se que o simples “ficar” não se compatibiliza com a verdadeira vocação do homem, que é o amor, pois aquele verbo, embora seja de ligação, é insuficiente para a prática do amor ao qual Deus nos incentiva. Ele transforma o outro no descartável, no facilmente dispensável, transformando-nos em autômatos, frágeis porque distantes da nossa verdadeira vocação. Foi por isso que Marina, a sábia personagem do conto, saiu à cata dos outros verbos de ligação, pois eles todos, juntos, tornam perfeitos os desígnios de Deus para nós. Ela mesma sentiu a imperfeição do “ficar” por si mesmo, procurando o algo mais, que Deus pede de nós em nosso namoro, na conjunção do continuar, do permanecer, do ser, do estar, do parecer… É Deus que, implantando-se no seio do namoro, etapa fundamental da relação entre homem e mulher, opera entre eles a complementaridade, “de modo que já não são dois, mas uma só carne” (Mt 19,6).

E Renato, depois da exposição de Marina, o que fez? Ligou para ela no dia seguinte, a voz ainda indecisa, dizendo: “Eu… queria… Eu queria serespaperconfi com você…”.

Fonte: Universo Católico


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