Milagre vem do latim miraculum. Na Antigüidade clássica era um fato excepcional ou inexplicável, um fato maravilhoso ou extraordinário que suscita admiração, considerado como sinal e manifestação de uma vontade divina.
A partir do testemunho bíblico, percebe-se uma evolução na compreensão teológica do milagre. Os momentos centrais dessa compreensão foram a doutrina de Santo Agostinho, de Santo Tomás e a resposta apologética à crítica ilustrada. O Magistério da Igreja ocupou-se do milagre, sobretudo a partir do Concílio Vaticano I.
a) Na Sagrada Escritura
As coordenadas da linguagem bíblica sobre o milagre são diversas. O termo traduziu a riqueza expressiva dos termos hebraicos ot, nifla’ot, nora’ot, môfét, e os termos gregos sêmeia, dýnamis, thaúmata, térata, parádoxa, etc.
Para o aspecto psicológico do milagre: no Antigo Testamento encontramos môfét, que significa prodígio, um fato insólito, que provoca assombro, admiração, surpresa. No Novo Testamento, encontramos thaumázo e téras, com o mesmo tipo de significado. No entanto, esse prodígio, aos olhos da Sagrada Escritura, não é um prodígio profano, mas sagrado.
Para o aspecto factual, ontológico: no Antigo Testamento, encontramos nifla’ôt, que são obras próprias de Deus e impossíveis para o homem (ações divinas), manifestações e efeitos do poder divino. É o aspecto ontológico do milagre: obra transcendente, impossível às criaturas, o que supõe uma intervenção especial da causalidade divina.
Para o aspecto intencional ou semiológico ou noético: no Novo Testamento, encontramos sêmeion (l. signum), pois o milagre não é somente um prodígio que suscita o assombro, mas um sinal que Deus dirige aos homens. O milagre é portador de uma intenção divina que há de ser lida. Assim, ora Deus dá a entender que está com o seu enviado (p. ex., Moisés, Elias), ora que chegou o Reino (p. ex., nos “sinais” operados por Jesus).
Assim, para a Sagrada Escritura, o milagre é um prodígio religioso (aspecto psicológico), uma obra de poder (aspecto da causalidade), um sinal dirigido por Deus (aspecto da intencionalidade). Especialmente nos Evangelhos, é considerado como sinal, isto é, como “palavra plástica” de Deus que interpela o homem e o ajuda a proferir um ato de fé na mensagem transmitida por Cristo. Ou seja, os milagres são sinais divinos que não podem dar-se separados ou isolados da Revelação de Deus à qual pertencem e que expressam.
b) Em Santo Agostinho
Nos Padres, o milagre é apresentado dentro do conjunto da Revelação e da fé, destacando seu caráter de sinal assim como a função que lhe é própria: orientar à Revelação.
Santo Agostinho foi o primeiro a estabelecer uma doutrina sistemática sobre o milagre, que influirá até ao século XII. Considera o milagre no horizonte da atividade criadora de Deus, que deixou sementes e virtualidades nas coisas (rationes seminales). No milagre importa mais o seu valor de sinal e não tanto o de transcendência física. Ele reconhece no milagre a intervenção divina, que não consiste, no entanto, em um ato de poder criador de Deus, mas em um desígnio de sua providência, mediante o qual desperta “a energia” que já havia depositado nas coisas. Os milagres seriam fenômenos que Deus provoca a partir das sementes secretas que se encontravam em germe desde a criação. Portanto, de certa forma, tudo, na natureza e no mundo, pode ser considerado como milagre, e os milagres especiais o são por seu caráter insólito e extraordinário. O fundamental neles não é o poder que mostram, mas que Deus pode utilizá-los de modo especial como sinais. Em De Trinitate, são propriamente milagres e sinais aqueles fatos que se apresentam a nossos sentidos para transmitir-nos algo divino. Em De utilitate credendi, milagre é tudo o que, sendo difícil e não-habitual, supera as esperanças e o poder do espectador assombrado. Portanto, um acento no psicológico: para Santo Agostinho, o importante no milagre é sua capacidade de elevar o homem à inteligência das realidades do mundo da graça. Não nega a intervenção direta de Deus, mas acima de tudo é um sinal devido ao seu caráter não-habitual ou extraordinário. Uma síntese do pensamento agostiniano sobre o milagre encontra-se no comentário sobre a multiplicação dos pães, em Tractatus in Ioannis Evangelium.
c) Em Santo Anselmo e Santo Tomás
Santo Anselmo distingue tríplice causalidade: a da natureza, a do homem, a de Deus. A natureza e o homem não podem fazer nada sem Deus, mas Deus pode atuar sem a natureza e sem o homem. O milagre tem que ver com a causalidade divina, independentemente de toda causa segunda; é um fato transcendente, que só pode atribuir-se a Deus. Portanto, um acento no ontológico.
Santo Tomás de Aquino ocupou-se do milagre em diversos lugares. O Aquinate retoca a definição de Santo Agostinho: Miraculum dicitur arduum et insolitum supra facultatem naturae et spem admirantis proveniens. Afirma que nos milagres podemos distinguir: primeiro, o que nele ocorre, quer dizer, algo que supera as forças da natureza, que é o que faz designar o milagre como ato de poder; em segundo lugar, a finalidade do milagre, isto é, a manifestação de um caráter sobrenatural; finalmente, seu caráter excepcional é que os faz designar como prodígios ou maravilhas.
Ainda, o Doutor Angélico distingue três gêneros de milagres, segundo a distância entre o fato devido à intervenção divina e as possibilidades das causas segundas: milagres em que Deus obra algo que a natureza nunca pode fazer; milagres em que Deus obra algo que a natureza pode realizar, mas em outra ordem; milagres em que Deus obra algo que também as criaturas fazem, mas o faz sem ater-se a determinadas exigências.
d) Na crítica ilustrada e na Apologética
Depois de Santo Tomás, acentuou-se o aspecto ontológico, sem preocupação demasiada com os outros aspectos. A própria idéia de Santo Tomás sobre lei e natureza acabaram cedendo espaço às idéias racionalistas: a lei no contexto moderno. A natureza, pensam os deístas e ilustrados, está regida por leis necessárias e inalteráveis, postas por Deus. Postula-se, então, sobre bases filosóficas, uma visão determinista da natureza. Um determinismo que acabou adversário da possibilidade do milagre. Nessa visão da natureza, o milagre torna-se impossível; claro está, dentro da visão da crítica ilustrada onde a noção de Deus é a própria do deísmo ou do panteísmo, onde Deus é entendido como suprema Razão que se manifesta na universalidade e necessidade, mas que se vê incapacitada de integrar a liberdade.
A resposta da Apologética teológica insistiu sobretudo na possibilidade dos milagres e na “quebra” das leis naturais que os caracteriza e que somente Deus pode realizar. Ao centrar-se de maneira preponderante na transcendência física do milagre, a Apologética deixou, de certo modo, que o caráter de sinal caísse no esquecimento. Ao ater-se somente à consideração do milagre/prodígio, concebido como um fato de ordem física que supera a força eficiente de todas as criaturas, sem apelar ao caráter intencional, reduz um problema religioso a um problema de pura causalidade eficiente. Pois o milagre em sua especificidade mais profunda é um sinal de uma ordem da graça dirigido por Deus.
e) Numa renovação na idéia de milagre
Uma fonte de renovação sobre o pensamento em torno ao milagre deve-se ao filósofo Maurice Blondel. Para ele, o milagre não é somente um prodígio físico que se refere exclusivamente aos sentidos, à ciência ou a filosofia, mas que é, ao mesmo tempo, um sinal dirigido a todo homem, um sinal de ordem espiritual e de caráter moral e religioso, um sinal que revela, não apenas a existência da Causa Primeira (do que os fatos naturais são suficientes para assegurar-nos), mas, sobretudo, a bondade de um Deus Pai que marca sua intervenção especial e que autentica desse modo um dom sobrenatural.
Assim, o milagre tem uma realidade física. Não é somente um fato extraordinário, percebido aos olhos da fé; é um testemunho escrito por Deus nos fatos. Se o milagre é verdadeiramente figurativo da bondade “anormal” de Deus, é preciso que possua uma realidade física. Os milagres são benefícios temporais verdadeiros e reais. O milagre é o análogo do sobrenatural. Situa-se no juízo mesmo de dois mundos: é sinal sensível das realidades invisíveis.
Mais. O milagre tem uma função no tempo presente: um benefício real. Mas este benefício não é mais que uma prefiguração, uma antecipação fugidia da “terra prometida”. O milagre pertence ao mundo da Revelação divina. Por sua própria natureza, o homem não pode ser mais que servidor, amigo, “filho adotivo”: numa invenção sobre-humana e supradivina do amor. O milagre é a “teofania” da bondade misericordiosa e favorável que triunfa sobre a natureza e sobre o tempo no tempo e na natureza mesma. Os milagres são “atos falantes”, “palavras atuantes”. Se o milagre nos desconcerta e nos inquieta, é porque nos urge à conversão. Em sua relação com a doutrina da fé, o milagre é motivo de credibilidade. Mostra a bondade da mensagem em exercício.
Ainda: é impossível demonstrar cientificamente a transcendência de um fato. Mas o milagre não se situa nesse nível. Não fala a linguagem da ciência. O que se pode constatar é seu caráter extraordinário e perceber sua relação com a mensagem de Deus. O milagre é o que na ordem sensível se leva a cabo divinamente, com vistas ao sobrenatural. O milagre recorda-nos que o mundo é criado por Deus, que não existe mais que nEle e para Ele.
Portanto, para Blondel, o milagre é ao mesmo tempo um fato extraordinário que rompe bruscamente com o curso habitual das coisas e uma manifestação absolutamente particular da bondade de Deus Pai. Um sinal figurativo e confirmativo da mensagem cristã. Um sinal da “anormal” bondade de Deus. Um prodígio significante: aurora da nova criação.
Segundo R. Latourelle, milagre é um prodígio religioso, que expressa na ordem cósmica (o homem e o universo) uma intervenção especial e gratuita do Deus de poder e de amor, que dirige aos homens um sinal da presença ininterrupta de uma palavra de salvação no mundo.
Assim, em primeiro lugar, é um prodígio na ordem cósmica, um fenômeno insólito que altera o curso habitual das coisas e que causa surpresa e admiração. Em segundo lugar, é um prodígio religioso ou sagrado, ou seja, realizado num contexto religioso (não-fantasmagórico, fabuloso ou mítico). No contexto profano, o milagre não teria nenhum sentido e nenhuma razão de ser. Em terceiro lugar, é uma intervenção especial e gratuita do Deus de poder e de amor. Em quarto lugar, é um sinal divino, ou seja, é um prodígio com significado.
f) No Magistério
Não há uma definição completa de milagre dada pelo Magistério da Igreja, ou seja, nunca o julgou necessário ou nunca a quis dar. O Concílio Vaticano I indica as características do milagre: são fatos divinos, isto é, têm Deus como autor, ao menos como causa principal, e são fatos distintos dos da Providência ordinária supondo uma intervenção especial de Deus; são sinais dirigidos por Deus aos homens para ajudar-nos a reconhecer que Deus falou à humanidade; causam assombro.
Pio X recolhe no juramento antimodernista o mesmo ensinamento do Vaticano I, insistindo na idéia de que os milagres são motivos de credibilidade acomodados a toda época. Pio XII refere-se também ao juízo certo de credibilidade, que se apóia nos milagres, acerca da origem divina da religião cristã.
No Concílio Vaticano II mencionam-se: “obras, sinais e milagres pelos quais Cristo revela e atesta a Revelação”; “os milagres de Jesus permitem comprovar que o Reino de Jesus já chegou à terra”; Cristo “apoiou e confirmou sua pregação com milagres para excitar e robustecer a fé dos ouvintes, mas não para exercer coação sobre eles”.
Fonte: Presbiteros