Há nos Evangelhos, referências aNossa Senhora que no passado, no clima dominado pela idéia de privilégio,criavam certos embaraços entre os crentes e que agora pelo contrário,aparecem-nos como marcos nesses caminhos de fé de Maria. Passagens que, porisso mesmo não precisamos por de lado apressadamente, ou suavizar comexplicações convenientes. Vamos considerar brevemente esses textos.
Comecemos com o episódio da perdade Jesus no templo (cf. Lc 2,41 ss). Lucas realçando que Jesus foi encontradonovamente "depois de três dias", talvez já faça referencia aoMistério Pascal da morte e ressurreição de Cristo. De qualquer maneira, comtoda a certeza este foi o início do mistério pascal de despojamento para a Mãe.De fato, que precisou ela ouvir depois de tê-lo encontrado novamente? Porqueme Procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai? Uma mãe emcondições de entender o que o coração de Maria experimentou ouvindo essaspalavras colocavam entre ela e Jesus uma outra vontade, infinitamente maisimportante, que punha em segundo lugar qualquer outro relacionamento, também orelacionamento filial com ela.
Continuemos, porém. Encontramosuma menção de Maria em Caná na Galiléia, exatamente no momento em que Jesusestá começando seu ministério público. Conhecemos os fatos. Qual a resposta queMaria ouviu de Jesus ao seu discreto pedido de intervenção? Que temos noscom isso mulher? (Jo 2,4). De qualquer maneira que se expliquem essaspalavras elas soam duras, mortificantes, parecem novamente colocar umadistancia entre Jesus e sua Mãe.
Todos os três Sinóticosreferem-nos este outro episódio acontecido durante a vida pública de Jesus. Umdia enquanto Jesus estava pregando, chegaram sua Mãe e alguns parentes parafalar-lhe. Talvez a Mãe estivesse preocupada com a saúde dele, o que é muitonatural para uma mãe, pois que logo antes está escrito que Jesus, por causa damultidão, não podia nem comer (cf. Mc 3,20). Percebemos um detalhe. Maria, aMãe, precisa até mendigar o direito de ver o Filho e de falar-lhe. Ela não abrecaminho no meio da multidão, aproveitando o fato de ser mãe.Pelo contrário,ficou esperando fora enquanto os outros foram até Jesus para informá-lo:"Lá fora está tua mãe que te quer falar". Mas, aqui também, o maisimportante é a palavra de Jesus que contínua sempre na mesma linha:"Quem são minha mãe e irmãos?" (Mc 3,33). Já conhecemos aresposta. Procuremos colocar-nos – tente, por exemplo, a mãe de um sacerdotecolocar-se – no lugar de Maria e entenderemos a humilhação e o sofrimento queaquelas palavras lhe causaram. Sabemos hoje que naquelas palavras está mais umelogio do que uma repreensão para a mãe; mas ela não sabia, pelo menos naquelemomento. Naquele momento havia só a amargura de uma recusa. O Evangelho não dizse depois Jesus saiu para falar-lhe; provavelmente Maria teve de ir embora, semter visto o filho e sem ter falado com ele.
Um outro dia – narra São Lucas -uma mulher no meio da multidão teve numa exclamação de entusiasmo para comJesus: Felizes – ela disse – as entranhas que te trouxeram e os seios que teamamentaram!Eram um desses cumprimentos que, por si sós, bastam para fazera felicidade de uma mãe. Maria, porém, se estava presente ou se foi informada,não pode saborear tranqüilamente estas palavras, porque Jesus logo se apressoua corrigir: Dize antes: Felizes os que escutam a palavra de Deus e a põe emprática (Lc 11,27-28).
Ainda um ultimo detalhe nestalinha. São Lucas num determinado ponto de seu Evangelho, fala de um grupo depiedosas mulheres – cujo nome também se refere – que tinham sido beneficiadaspor ele e que o "serviam com os seus bens" (cf. Lc 8,2-3), isto é,cuidavam das necessidades materiais deles e dos apóstolos, preparando umarefeição, lavando ou consertando uma roupa, etc. Que isso tem a ver com Maria?É que entre essas mulheres não aparece a mãe, e todos sabem quanto uma mãogostaria de prestar estes pequenos serviços ao filho, especialmente se consagradoao Senhor. Aí temos um sacrifício total do coração.
Que significa tudo isso? Umasérie de fatos e de palavras tão detalhados e coerentemente não pode ser umacaso. Também Maria teve de experimentar sua Kénose. A Kénose deJesus consistiu no despojar-se de seus legítimos direitos e de suasprerrogativas divinas, assumindo a condição de servo e manifestando-seexteriormente como simples homem. A Kénose de Maria consistiu em deixar-sedespojar de seus legítimos direitos de Mãe do Messias, parecendo-se diante detodos uma mulher como as outras. A condição de Filho não poupou ao Cristoqualquer humilhação, Jesus dizia que a Palavra é o instrumento com que Deuspoda e limpa os ramos: Vós estais limpos, devido a Palavra… (João 15,3). E,tais foram as palavras que ele dirigiu a sua Mãe. Por acaso não seria essaPalavra a espada que, conforme Simeão, um dia transpassaria sua alma?
A Maternidade divina de Maria eratambém antes de tudo, uma maternidade humana; tinha um aspecto também"Carnal", no sentido positivo deste termo. Jesus era o seu filhocarnal, da mesma maneira que os dois filhos nascidos da mesma mãe são chamadosde irmãos carnais. Aquele Filho era o seu filho, era sua única riqueza, o seuúnico apoio na vida. Mas ela precisou renunciar a tudo o que havia dehumanamente exaltante na sua vocação. O Filho mesmo colocou-a numa situação talque ela não podia aproveitar-se de nenhuma vantagem terrena da sua situação demãe. Seguia a Jesus "como se não fosse" sua mãe. Desde que começouseu ministério e deixou Nazaré, Jesus não teve onde reclinar a cabeça, e Marianão teve onde reclinar seu coração.
À sua pobreza material, já queera muito grande, Maria precisou acrescentar também a pobreza espiritual, noseu grau mais alto. Pobreza de espírito que consiste em deixar-se despojar detodos os privilégios, em não poder apoiar-se em nada, nem do passado e nem dofuturo, nem nas revelações e nem nas promessas, como se tudo isso não lhepertencesse e nunca tivesse acontecido. São João da Cruz chama isso de "noiteescura da memória", e falando a respeito lembra explicitamente a Mãe deDeus (São João da Cruz, Subida ao Monte Carmelo III 2,10). Essa "noite damemória" consiste no esquecer-se, ou melhor, na impossibilidade de, mesmoquerendo, lembrar-se do passado, lançados unicamente na direção de Deus,vivendo de pura esperança. Essa verdadeira e radical pobreza de espírito que érica só de Deus e, mesmo isso, só na esperança. É o que Paulo chama de viver"esquecido do passado" (Fl 3,13).
Com sua Mãe, Jesus comportou-secomo um diretor espiritual lúcido e exigente que, tendo entrevisto uma almaextraordinária, não a faz perder tempo nem contemporizar com sentimentos econsolações naturais: pelo contrário, se ele mesmo for santo, arrasta-o numacorrida sem tréguas para o despojamento total, para chegar à união com Deus.Ensinou a Maria a renuncia de si mesma. A seus seguidores de todos os séculos,Jesus os dirige mediante o seu Evangelho; sua mãe, porém dirigiu-a de viva voz,pessoalmente. Por uma das mãos Jesus deixava-se conduzir pelo Pai, através doEspírito, para onde o Pai o queria: ao deserto para ser tentado, ao monte paraser desfigurado, ao Getsêmani para suar sangue… Eu sempre faço -eledizia- o que é do seu agrado (Jo 8,29). Com a outra mão, Jesus conduzsua mãe na mesma corrida para fazer a vontade do Pai. Por isso, agora que estáglorificada no céu perto do Filho, Maria pode estender sua mão materna para nóspequeninos, levando-nos consigo e dizendo com bem mais razão que o Apóstolo:Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo (I Cor 11,1).
Fonte: Maria, Um espelho para a Igreja / Raniero Cantalamessa