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Leigo e clero – diferenças e unidade em seu papel

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O VATICANO II E A SITUAÇÃO DOS LEIGOS FRENTE AO CLERO

Nos nossos tempos, muitas questões são levantadas sobre o Concílio Vaticano II, sobre o seu papel, sua natureza, seus frutos para a Igreja. Elogiado por todos os papas desde a sua convocação até os nossos dias, o Vaticano II trouxe muitas graças para a Igreja e para o mundo; citando as palavras de SS. Bento XVI, [h]oje vemos que a boa semente, mesmo desenvolvendo-se lentamente, cresce todavia, e cresce também assim a nossa profunda gratidão pela obra realizada pelo Concílio(Discurso do Papa Bento XVI aos Cardeais, Arcebispos e Prelados da Cúria Romana na apresentação dos votos de Natal).

Contudo, o Santo Padre nos lembra que os frutos do Vaticano II desenvolvem-se lentamente. É lamentável que, em muitos ambientes, o Concílio ainda não tenha encontrado a terra fértil onde pudesse crescer e frutificar, ainda não tenha encontrado acolhida nos corações de alguns católicos, de modo que pudesse se tornar uma abundante fonte de renovação espiritual, causando todo o bem às almas que desejamos e contribuindo sem barreiras para a maior Glória de Deus. Não é novidade que Cristo foi perseguido e que, através dos séculos, a Sua Igreja também sempre o tem sido; contudo, é de se lamentar que, desgraçadamente, até mesmo dentro da Barca de Pedro existam aqueles que se esforcem para fazer-Lhe água.

Há católicos que não aceitam o Vaticano II. Levantam-lhe toda sorte de objeções, falam em rompimento com a Doutrina Católica, em modernismo infiltrado na Igreja, em dessacralização do clero que teria sido nivelado aos leigos, entre (muitas) outras. Nenhuma dessas objeções possui fundamentos sérios. Nesse artigo, eu gostaria de tratar sobre uma delas em específico: a questão da dessacralização do clero e da posição do leigo dentro da Igreja.

Abordagem negativa: rebatendo as falsas acusações

Segundo algumas pessoas, o Vaticano II teria aplicado o princípio da igualdade dentro da Igreja, de modo a acabar com a hierarquia existente e igualar os leigos aos sacerdotes. Os leigos passariam, então, a não depender mais dos ensinamentos do clero, fomentando assim uma espécie de catolicismo subjetivista onde cada fiel fosse o seu próprio líder absoluto, não respondendo a ninguém além de si próprio. Ora, isto é um absurdo, posto que Cristo fundou a Igreja hierárquica. Portanto, essas pessoas conclamam os católicos a uma rejeição do Concílio, posto que um erro tão pernicioso quanto este precisa ser duramente combatido.

É importante ir às fontes primárias, para verificar se o Vaticano II realmente concedeu aos leigos uma tal emancipação do ensino clerical. O Concílio tratou sobre a questão dos leigos na Constituição Dogmática Lumen Gentium, sobre a Igreja. O seu Capítulo IV tem como título Os Leigos e, ao longo dele, será exposta a Doutrina da Igreja referente ao laicato. Transcrevo, a seguir, alguns pontos que considero relevantes para o assunto em questão:

 Por leigos entendem-se aqui todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja, isto é, os fiéis que, incorporados em Cristo pelo Batismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo, exercem, pela parte que lhes toca, a missão de todo o Povo cristão na Igreja se no mundo. (LG 31)

A distinção que o Senhor estabeleceu entre os ministros sagrados e o restante Povo de Deus, contribui para a união, já que os pastores e os demais fiéis estão ligados uns aos outros por uma vinculação comum: os pastores da Igreja, imitando o exemplo do Senhor, prestem serviço uns aos outros e aos fiéis: e estes dêem alegremente a sua colaboração aos pastores e doutores. (LG 32)

Como todos os cristãos, devem os leigos abraçar prontamente, com obediência cristã, todas as coisas que os sagrados pastores, representantes de Cristo, determinarem na sua qualidade de mestres e guias na Igreja, a exemplo de Cristo, o qual com a Sua obediência, levada até à morte, abriu para todos o feliz caminho da liberdade dos filhos de Deus. (LG 37)

Embora muitos outros trechos pudessem ser citados, creio que esses sejam suficientes para que se veja qual é o ensinamento da Igreja no tocante à distinção entre os leigos e o clero. Essa distinção é evidente: a Lumen Gentium faz questão de frisar que, em Cristo, os leigos são profetas, sacerdotes e reis a seu modo e que exercem na parte que lhes toca a missão da Igreja. Se é “a seu modo, é porque esse modo não é o mesmo que compete ao clero (que, aliás, foi objeto de exposição do capítulo imediatamente precedente do documento). Se é na parte que lhes toca, é porque não lhes tocam todas as partes (em particular, a parte que compete ao clero  ensinar e governar  não compete aos leigos). Outra forma de ler o texto não se pode pretender honesta.

Indo mais adiante no texto, o documento conciliar frisa a relação que deve existir entre o laicato e o clero, os leigos e os sacerdotes: os pastores da Igreja […] prestem serviço uns aos outros e aos fiéis: e estes dêem alegremente a sua colaboração aos pastores e doutores (LG 32). De antemão, concedo que “prestar serviços não é necessariamente sinônimo de ensinar (embora todo ensino seja um serviço prestado, nem todo serviço prestado é um ensino); mas, igualmente, depreende-se do texto que a expressão prestar serviço foi aqui utilizada porque a função do clero, embora seja indubitavelmente de ensinar, não se reduz ao ensino (em particular, a Igreja tem a missão de ensinar, santificar e governar, sendo todos e cada um destes, sem dúvida, um serviço prestado). Não é possível ter uma leitura do texto segundo a qual os pastores da Igreja tenham “aberto mão” de seu múnus de ensinar, múnus que então teria sido compartilhado com os leigos. Para mostrar que tal leitura não se sustenta, basta ver o que diz a Constituição Dogmática em outros dois trechos.

Primeiro, faço notar que o documento fala, no seu capítulo anterior, sobre a constituição hierárquica da Igreja, mormente do Episcopado, e lá delimita, muito precisamente, qual é a função dos bispos da Igreja, na sua tríplice missão de ensinar, santificar e reger (cf. LG, 24-27). Em particular, o seguinte trecho é de uma clareza que dispensa comentários: [d]otados da autoridade de Cristo, [os bispos] são doutores autênticos, que pregam ao povo a eles confiado a fé que se deve crer e aplicar na vida prática […] e solicitamente afastam os erros que ameaçam o seu rebanho […]. E os fiéis devem conformar-se ao parecer que o seu Bispo emite em nome de Cristo sobre matéria de fé ou costumes, aderindo a ele com religioso acatamento (LG 25).

E, segundo, o próprio capítulo da Constituição Dogmática que trata sobre os leigos vai repetir o mesmo ensinamento mais à frente, quando diz que “devem os leigos abraçar prontamente, com obediência cristã, todas as coisas que os sagrados pastores, representantes de Cristo, determinarem na sua qualidade de mestres e guias na Igreja” (LG 37).

Não há, portanto, margens para dúvidas. O papel dos leigos na Igreja é distinto do papel dos sacerdotes (dos Bispos por Sucessão Apostólica e dos presbíteros por legítima transmissão de múnus): estes são doutores autênticos que pregam ao povo a eles confiado a Fé e afastam os erros que ameaçam o seu rebanho, a quem se deve aderir com religioso acatamento e com obediência cristã; ao passo que os leigos têm a parte que lhes toca na missão da Igreja, estando a seu modo unidos a Cristo em Sua missão profética, sacerdotal e régia, devendo dar alegremente a sua colaboração aos pastores e doutores, abraçando prontamente, com obediência cristã, tudo aquilo que os bispos “determinarem na sua qualidade de mestres e guias na Igreja.

Outrossim, registre-se ainda uma última coisa: aqueles que pretendem ter o Vaticano II ensinado erros e (dentre outras coisas) concedido aos leigos coisas que competem somente ao clero, e que, por isso, conclamam os católicos a uma rejeição ao concílio, estão fazendo exatamente aquilo que condenam. Pois não compete ao leigo o múnus de ensinar, e sim ao Magistério; ora, se o Magistério ensina uma coisa (no caso particular, o Vaticano II) e os leigos ensinam outra coisa contrária (que se deva rejeitar o Vaticano II), o que é isso senão uma usurpação de uma autoridade que não se tem, de um encargo que não se lhe compete? Aqueles, portanto, que acusam o Concílio Vaticano II de ter “igualando leigos e sacerdotes, e conclamam os católicos a rejeitarem-no sob esse pretexto, estão, no ato mesmo de sua acusação, fazendo exatamente aquilo de que acusam o Concílio. Este não permitiu que os leigos tivessem poder de ensino igual ou (muito menos!) superior ao do Magistério, de modo que são ilegítimas, em si mesmas, quaisquer acusações feitas nesse sentido.

Abordagem positiva: o verdadeiro papel dos leigos na Igreja

Após termos demonstrado a inconsistência de algumas posições contrárias ao ensino do Vaticano II sobre os leigos, cabe agora fazermos uma exposição positiva dessa doutrina, de modo que ela possa dar frutos verdadeiros e possibilitar uma maior glória para a Igreja e colaborar para a santificação do mundo.

Afinal de contas, qual é o papel dos leigos no Corpo Místico de Cristo? O Concílio o diz claramente: “[é] própria e peculiar dos leigos a característica secular. […] Por vocação própria, compete aos leigos procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e atividade terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade. Portanto, a eles compete especialmente, iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor. (LG 31)

Aqui, podemos vislumbrar o que é que se exige do leigo: que ele transforme o mundo a partir de dentro, que ele irradie a luz de Cristo no mundo. Convém que Cristo seja glorificado em todas as coisas  quer comais quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus (1Cor 10,31)  e isso inclui as pequenas coisas do dia a dia, inclui a vida familiar, a sociedade. Cristo é Rei de todas as coisas, e o reinado de Cristo se deve estender a todos os níveis da vida cristã.

É evidente que não compete à hierarquia da Igreja descer até as realidades quotidianas e ordená-las para Cristo. Não são os membros do clero que formam famílias, ou trabalham, ou estão engajados na política. Todas essas coisas são próprias dos leigos – utilizando o mesmo termo que a Lumen Gentium utiliza – e também nessas coisas Deus deve agir; também a família, o trabalho, a sociedade, devem estar ordenados para Cristo, servindo à maior glória de Deus.

E isso, que é lembrado pelo Concílio Vaticano II, sempre foi o papel dos leigos na Igreja. Por exemplo, nos primórdios do cristianismo, não foi o Concílio de Nicéia que converteu o Império Romano; antes, o Império foi cristianizado pelo testemunho de vida dos cristãos, até as últimas conseqüências, e foi esse testemunho que o ganhou para Cristo. As coisas não se dão (e nem nunca se deram) de cima para baixo, não são os ensinos da Doutrina e nem os decretos jurídicos da Igreja que modificam o mundo. O mundo é modificado quando os cristãos põem em prática os ensinamentos de Cristo, transmitidos pela Igreja. Em suma, o mundo é modificado quando há aquela colaboração entre os leigos e o clero da qual fala a Lumen Gentium: quando os doutores determinam e os fiéis vivem. Quando a Doutrina Cristã, custodiada pela Igreja, encontra eco na vida dos leigos, onde quer que eles estejam; aí sim é que o mundo é atingido pela pregação do Evangelho, e a Palavra de Deus pode ser semeada e frutificar.

O leigo precisa, pois, viver santamente, como um outro Cristo, dando testemunho de sua Fé na sua vida; no seu ambiente de trabalho, na família, no ambiente de estudos, nos cargos públicos que ele porventura venha a exercer, enfim, em todos os lugares no qual ele esteja presente. Este é o seu verdadeiro papel, é assim que ele pode realizar plenamente a sua vocação; esta é, sem dúvida, a parte que lhe toca na edificação do Reino de Deus.

Um dos maiores inimigos da Igreja nos nossos dias (e também nos tempos do Concílio) é o laicismo; é o “esquecer-se de Deus, vivendo como se Ele não existisse, relegando-O a um tipo de “foro privado”, distante de toda a vida pública. Esse mal tremendo foi denunciado violentamente por João Paulo II; o então Papa chegou mesmo a dizer que a Europa vivia uma “apostasia silenciosa, esquecendo-se do Criador. Este é um mal que corrói por dentro as estruturas sociais, tirando-as do serviço à Igreja e fazendo-as inimigas dEla. Creio que se possa dizer, sem exagero, que o laicismo é, hoje em dia, o maior obstáculo à livre-ação da Igreja no mundo.

Ora, qual é o remédio para o laicismo? Acaso a Igreja pode decretar o seu fim? Acaso a sua condenação pelo Magistério pode fazer com que ele simplesmente deixe de existir? Se fosse simples assim, ele já não existiria há muito tempo. O único remédio para o laicismo – e para qualquer mal que acometa as realidades temporais  só pode vir dos leigos, que são os responsáveis por tais realidades. Cuidar das coisas seculares não compete à hierarquia; compete ao laicato, e é este que se deve esforçar para que Cristo reine também nestas realidades. Se as células familiares são verdadeiramente católicas, se a educação religiosa é incentivada e bem feita, se o trabalho é realizado de modo cristão, se a lei positiva é dócil à Lei Natural, então, pelo simples princípio da não-contradição, não há laicismo.

Se considerarmos isso, e considerarmos que o Vaticano II foi realizado numa época de laicismo feroz, então poderemos ver claramente que, para a Igreja, os leigos desempenharem seu papel próprio é a melhor resposta ao problema do laicismo. A Igreja, muito sabiamente, entendeu que, se os católicos vivessem realmente como católicos, em todas as esferas da sua vida, não poderia haver laicismo. Num mundo onde este grassava feroz, a Igreja percebeu que isto só era possível porque os católicos  os leigos  não estavam vivendo como se lhes era exigido. E, sob essa ótica, fazem muito sentido as exortações conciliares  longe de serem uma condescendência às coisas do mundo, e longe de serem a causa da apostasia silenciosa que constatamos hoje em dia, elas são, isto sim, a voz (lamentavelmente, muito pouco ouvida) que se dirigiu, ou melhor, que se dirige aos leigos, para que eles cuidem bem das coisas que têm sob suas responsabilidades, e que, vivendo realmente como cristãos, possam arrancar o mundo da indiferença e conduzi-lo ao serviço de Cristo.

Portanto, o que tem a dizer o Vaticano II a nós? Em suma, ele nos diz que os leigos são especialmente chamados a tornarem a Igreja presente e ativa naqueles locais e circunstâncias em que só por meio deles ela pode ser o sal da terra (LG 33). É uma missão importantíssima, e que não compete a outros; são os leigos que têm o dever de cuidarem das coisas seculares, ordenando-as para Cristo, de modo a vencerem, assim, os graves problemas que elas apresentam nos nossos tempos.

Só gostaria de uma última reflexão antes de terminar. Observa-se, aqui como em outros pontos do Vaticano II, este fenômeno bizarro: desobedece-se a algum ponto do Concílio, e depois se o apresenta como sendo a causa de algum problema; quando, se este ponto tivesse sido realmente seguido, seria a solução de tal problema. Conforme foi mostrado, a questão dos leigos da maneira que foi exposta pelo Vaticano II, longe de ter contribuído para uma suposta laicização da sociedade, é, ao contrário, o melhor remédio contra o laicismo que hoje vivemos e que precede o Concílio. Que os leigos possam se esforçar, pois, para seguir aquilo que a Igreja lhes determina, no lugar que lhes compete, de modo a concorrerem, “com todas as forças que receberam da bondade do Criador e por graça do Redentor, para o crescimento da Igreja e sua contínua santificação (LG 33).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



FERRAZ, Jorge. Apostolado Veritatis Splendor: O VATICANO II E A SITUAÇÃO DOS LEIGOS FRENTE AO CLERO. Disponível em http://www.veritatis.com.br/article/4008. Desde 10/30/2006.


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