Dom Redovino Rizzardo
Atéhá alguns anos, todos os católicos aprendiam, quando crianças, os cincomandamentos da Igreja. Um deles tem a seguinte formulação: “Jejuar eabster-se de carne conforme manda a Santa Mãe Igreja”.
Escrevi“até alguns anos atrás”, porque após as reformas litúrgicas acontecidasna segunda metade do século passado, a situação não ficou sempre clarana mente de muitos católicos. A maioria dos que ainda acredita no valorda penitência, pensa que os dias de jejum e abstinência de carne foramreduzidos a apenas dois: quarta-feira de cinzas e sexta-feira santa.Jejum, para quem está entre os 18 e os 60 anos; abstinência, para osque superaram os catorze anos.
Contudo, não é bem isso que prescreveo Código de Direito Canônico, sancionado pelo Papa João Paulo II, em1983: «Os dias e tempos penitenciais, em toda a Igreja, são todas assextas-feiras do ano e o tempo de quaresma» (Cân. 1250).
Em1986, a “Legislação Complementar” ao Código de Direito Canônico,redigida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, retomou edetalhou a orientação dada pela Santa Sé: «Toda sexta-feira do ano édia de penitência, a não ser que coincida com solenidade do calendáriolitúrgico. Os fiéis, nesse dia, se abstenham de carne ou outroalimento, ou pratiquem alguma forma de penitência, principalmente obrade caridade ou exercício de piedade. A Quarta-feira de Cinzas e aSexta-feira Santa, memória da Paixão e Morte de Cristo, são dias dejejum e abstinência. A abstinência pode ser substituída pelos própriosfiéis por outra prática de penitência, caridade ou piedade,particularmente pela participação, nestes dias, na Sagrada Liturgia».
Qualo sentido e o valor de normas como estas, em pleno século XXI? Aresposta é simples: aumenta cada vez mais o número de médicos epsicólogos que olham para o jejum e a abstinência como uma das melhoresterapias para a saúde física e mental. Não apenas a obesidade, masprincipalmente a ansiedade e a depressão crescem e matam quando setenta superar o vazio existencial pelos três ídolos da modernidade: oter, o prazer e o poder.
Quemrealiza o ser humano é sempre e somente o amor, o qual, quandoverdadeiro, vem de Deus, é gratuito, busca o bem da pessoa amada eliberta quem o vive. Em contrapartida, ele não passa de uma máscara senão se percorre um caminho de conversão e santidade. É precisamenteesta a função da penitência, do jejum e da abstinência. Com eles, o quese verifica é um salto de qualidade na vida da pessoa, libertando-a dasamarras e dos pesos que lhe impedem de captar os apelos de Deus e dosirmãos. Se o alimento sacia a fome do corpo, o jejum sacia a fome daalma.
Comotoda disciplina, o autodominínio na comida e na bebida acaba sendotambém uma vitória sobre a cultura do consumo e do materialismo – que,aliás, não é de hoje, se já o salmista a detectava em seu tempo: «Nãodura muito tempo o homem rico e poderoso; é semelhante ao gado gordoque se abate. Este é o fim do que espera estultamente, o fim daquelesque se alegram com sua sorte: são um rebanho recolhido ao cemitério, ea própria morte é o pastor que os apascenta; são empurrados e deslizampara o abismo» (Sl 49,13-15).
Overdadeiro jejum, porém, vai muito além… da comida e da bebida. Se «alei e os profetas se resumem no amor a Deus e ao próximo» (Mt 22,40),para o jejum não é diferente. É o que assevera o próprio Deus, atravésdo profeta Isaías: «O jejum que prefiro é este: acabar com as prisõesinjustas, libertar os oprimidos, romper com a escravidão, repartir opão com o faminto, acolher os pobres e peregrinos, vestir os nus e nãose fechar à própria gente. Se assim você fizer, a sua luz brilhará comoa aurora, suas feridas sararão rapidamente, e quando você invocar oSenhor, ele o atenderá; você pedirá socorro e ele dirá: Eis-me aqui»(Is 58, 6-9).
Paraacolher e viver o amor de Deus, o coração precisa estar limpo e livre.É esse o papel que Santo Agostinho atribui ao jejum: «O vazio precisaficar cheio. Você conseguirá se encher de bens se se esvaziar do mal.Suponha que Deus queira enchê-lo de mel. Se você estiver cheio devinagre, onde ficará o mel? É preciso jogar fora o conteúdo do jarro elimpá-lo, ainda que com esforço, esfregando-o, para que possa servir aoutro fim. Pode ser mel, ouro, vinho, tudo o que dissermos e quisermos,mas, no fundo, há sempre uma realidade indizível, que se chama Deus.Dizendo Deus, o que dissemos? Esta única sílaba é toda a nossaexpectativa. Tudo o que conseguimos dizer, fica sempre aquém darealidade. Dilatemo-nos para ele, e ele, quando vier, encher-nos-á.Seremos semelhantes a ele, porque o veremos como ele é».