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Esqueleto no sofá, dinheiro no trator, sangue no sanduíche, evang

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“O proprietário de um apartamento na França, irritado coma falta de pagamento do aluguel, resolveu ir até o lugar na companhia de umagente judicial. Ao chegar ao apartamento, em Saint-Etienne (Leste) encontrou oesqueleto do inquilino sentado no sofá da sala. Segundo os médicos forenses, amorte, aparentemente por causas naturais, ocorreu há mais de um ano, quando ofalecido tinha 42 anos.” Macabro, não? No entanto, essa notícia que soa, paranós, tão semelhante aos filmes de terror que merece ser anunciada no jornal OPovo do dia 05 de maio, não é mais assunto de notícia na maioria dos jornais daEuropa. Por lá, é muito comum que as pessoas morem sozinhas, que não convivamcom vizinhos e que tenham tão poucos ‘amigos’ (bastaria um!) que sejamencontradas mortas devido ao mal cheiro de seus corpos que – esse sim –incomoda e faz acordarem os vizinhos.

 ‘Ondejá se viu, esqueleto no sofá? Lugar de esqueleto é na cova’, algum ‘lunga’poderia resmungar, irritado. Pois olhe, não é só esqueleto que anda em lugarerrado, hoje em dia. Veja esta, também do jornal O Povo, do dia 06 do mesmomês: ‘Saddam fez saque de um bilhão’. É possível que você tenha pensado comoeu: ‘Nossa! Como é que esse homem tinha tanto dinheiro na conta!’, julgandoque, como todo mortal, ele tivesse feito um saque em sua conta corrente. Ledo engano.Era somente a manchete. Na reportagem, na página 26, lê-se o grotesco:‘[Saddam] enviou seu filho Qusai para saquear [você leu certo, é ‘saquear’, não‘sacar’] o dinheiro no meio da noite. A quantidade de dinheiro (…) era tãogrande que precisou ser retirada do banco em três tratores com reboques’.

 Esqueletono sofá, dinheiro em trator – três tratores com reboques! – graças a Deus issoaconteceu bem longe, lá ‘nas óropa’, no Oriente Médio! Graças a Deus, mesmo. Noentanto, não é só por lá que as coisas andam sendo encontradas ou colocadas noslugares errados. Veja essa: ‘Uma estudante de 19 anos levou um tiro no rosto,na manhã de ontem, enquanto comprava um sanduíche na lanchonete no campus daUniversidade Estácio de Sá no Rio comprido. Ela corre risco de morte’, diz omesmo noticioso, no dia 6 de maio. O sanduíche, manchado do sangue que espirroudo seu rosto, conforme se deduz da foto que ilustra a reportagem, deve tercaído por terra, como ela: ‘De repente, ouvi tiros e quando olhei, ela já estavacaída no chão. Tinha muito sangue’, testemunhou a colega.

 Se nãofosse cansá-lo mais ainda, poderíamos adicionar a esta lista outras coisas epessoas ‘fora do lugar’, como policiais na bandidagem, metralhadorassofisticadas nas mãos de civis, mesa farta em casa de gordo, mesa magra em casade desnutrido, e por aí vai. O que é, afinal, que está errado? Por que, derepente, tudo parece estar pelo avesso?

 Émuito complicado. Não tenho capacidade para analisar problema tão complexo.Consigo ver, porém, uma outra ‘coisa’ fora do lugar. Esta sim, dentre asinúmeras e intrincadas causas de tanta coisa macabra, é, com certeza, uma dascausas mais importantes. Refiro-me ao Evangelho na prateleira, a Boa Novaprisioneira do prédio da igreja.

 Aprateleira não é o lugar do Evangelho. Um Evangelho na prateleira é tãoinusitado quanto um esqueleto no sofá. Morre aquilo que é vida. Fica inerte oque deveria estar-se movimentando. Fica incomunicável o que deveria estar-secomunicando. Fica, enfim, como o esqueleto no sofá. Não pelo Evangelho em si. Éque ambos, tanto o inquilino quanto o Evangelho na prateleira, não encontraramamigos. Ambos foram feitos incomunicáveis. Ambos foram condenados a seresquecidos, abandonados, inertes.

 Saddammandou saquear – palavra politicamente correta para ‘roubar’ – um bilhão dedólares do Banco Central do seu país. Apossou-se ilicitamente do que não lhepertencia, do que pertencia ao povo do Iraque e o resultado foram três tratorespuxando reboques cheios de cédulas de dólar e euro, tão cheios que, segundo anotícia, alguém, na pressa da fuga, acabou deixando para trás um saco cheio de600 mil dólares… apenas! Saddam quis usufruir para si e para o seu grupo dodinheiro de todos. Com ele, certamente pensava em comprar sua segurança, asalvação da guerra.

 Poisbem. Quando o Evangelho é restrito ao que se ouve na missa, na pregação, nogrupo de oração, ele também se encontra no lugar errado. Torna-se como que uma‘posse’ minha, usada ilusoriamente como garantia da minha ‘segurança’ e ‘salvação’.Esteja na prateleira, empoeirado, esteja restrito aos muros do templo, oEvangelho estará, certamente, reduzido à inércia de um lugar inadequado. Oresultado será o sangue no sanduíche, eco do dinheiro no trator, eco doesqueleto no sofá.

 Quandotivermos amor e ardor, coragem, destemor, criatividade, ousadia, paracolocarmos o Evangelho na vida do dia a dia, praticarmos a Boa Nova pelajustiça aplicada a todos os meios seculares, anunciarmos o Amor e a Paz atodos, em especial aos jovens, então, o Evangelho da Vida não deixará oesqueleto no sofá, a Justiça não permitirá o saque ao banco, o Amor e a Pazfarão cair as armas que mancharam de sangue o sanduíche.

 Teríamos,então, uma revolução nas manchetes: ‘Inquilino de 42 anos é visitado por proprietárioque, vendo-o doente, presta-lhe socorro e o acompanha até o final da vida,dando-lhe sepultura digna’; ‘Governante implanta sistema de distribuição deseus bens pessoais em favor da promoção humana e justiça social de seu país’;‘Luciana Gonçalves Novaes, estudante de enfermagem na Universidade Estácio deSá funda ong em parceria com moradores do Morro da Mineira, universitários edocentes de sua faculdade para prestar assistência na área de saúde aoshabitantes da favela do Turano’. Com um olhar cúmplice de mútua alegria,partilhando um sorriso aliviado, Pedro e Paulo, dobrarão o jornal do dia,louvando: ‘Graças a Deus, as coisas entraram, finalmente, em seu lugar. OEvangelho vive nas convicções mais profundas dos homens.’ E, bem ao jeito dosjovens, esperança da Igreja, baterão a mão aberta na mão aberta do outroexclamando, juntos: ‘Yyyeess!’


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