Formação

O consumo como modo de vida

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Estamos tão imersos na realidade do consumo que,normalmente, não conseguimos nos distanciar dela, a fim de poder fazer umaanálise de seus efeitos no nosso estilo de vida e em nossa percepção da vida eda relação com o mundo e com os outros. Marcada por algo que o filósofo francêsGilles Lipovetsky chama de hiperindividualismo e hiper-hedonismo, a cultura doconsumo transforma a aparência num valor em sim mesmo, numa garantia dequalidade de vida e faz com que ?a sensação se torne autenticidade?.

Com a ajuda do professor João Décio Passos, mestre emCiências da Religião, doutor em Ciências Sociais e livre-docente em Teologia,queremos percorrer as principais etapas da transformação do consumo em cultura,para entendermos como a ?sedução do modo de vida (do consumismo), que entrapelos nossos sentidos, se apresenta como direito e dever de bem-estar e dequalidade de vida? como normalidade, como valor?.

Nesta entrevista, Passos, que é autor de diversos livros,mostrará também a contribuição que a experiência cristã pode dar para aformação de sujeitos livres e conscientes, capazes de superar o individualismoindo ao encontro do outro. Um processo que, segundo ele, ?se concretiza nasrelações internas da comunidade e nas relações dessa e de cada pessoa com omundo?.

Na sua opinião, comoa questão do consumo se insere no estilo de vida atual?

Professor João Décio: Para falar deste tema eu gostaria deme basear nos estudos do filósofo francês Gilles Lipo-vetsky e extrair dessesestudos as categorias de análise da sociedade atual. Para ele, ohiperindividualismo é a marca fundamental da nossa sociedade e se efetiva comohiperconsumismo e hiper-hedonismo. Ou seja, na busca do prazer como modo devida.

O consumo é entendido por ele como a fase atual docapitalismo mundial, incluindo em seu ciclo duas dimensões inseparáveis: adimensão objetiva efetivada na produção e no consumo incessantes e a dimensãoindividual de desejo e satisfação. Segundo essa linha, não podemos separar,nessa fase da sociedade capitalista, o aspecto estrutural e o aspectoindividual, são dois aspectos de um sistema único que move, concomitantemente,a economia global e a alma humana.

Em que sentido acultura do consumo move a alma humana?

Para Lipovetsky, o individualismo moderno atinge sua máximaexpressão na cultura de consumo, fazendo conectar os aspectos econômicos epsicológicos da vida humana. Produção de bens e desejo compõem, assim, os doislados de um único modo de vida, de forma que falar em produção já não significatão somente considerar os aspectos pu-ramente econômicos no regime macro, masencontrar no seu centro o indivíduo consumidor, sempre mais ávido de bem-estarcomo última peça na máquina global do consumo. O consumo deixa de ser um modode organizar a economia e a sociedade para ser também um modo de viver a vida,de representá-la e de dar-lhe valor.

E como o consumo setornou um modo de vida?

A história do consumo, conforme sintetiza Lipovetsky, podeser vista em uma sequência histórica que se arranca da revolução industrial coma produção em série, passa por uma fase de consumo intenso centrado navariedade de produtos e na divulgação das marcas e, por uma última fase,centrada no consumidor. Se nas fases anteriores, a dinâmica do mercadoconcentrava-se nos produtos, na fase atual, centra-se no consumidor. Amercadoria torna-se cada vez mais portadora de felicidade. O indivíduo éreceptor de produtos individualizados, disponíveis a seus gostos, moldados aoseu alcance.

Quer dizer que oproduto tornou-se um valor em si mesmo?

Sim. Na fase atual do capitalismo, estamos inseridos em suadinâmica como indivíduos que interiorizam seus produtos como necessários e,portanto, como valores. O bem-estar, sempre mais eficiente e prazeroso, é apulsão última que induz à compra dos produtos de última geração, que torna avida efetivamente mais facilitada.

Poderia explicarmelhor essa relação entre individualismo e consumo?

O que quero dizer é que quanto mais se consome, mais sereforça o individualismo e vice-versa. Os produtos renovados incessantemente,com tecnologia sempre mais aperfeiçoada, preços mais acessíveis e aparênciamais sedutora, oferecem o que, normalmente, é chamado de qualidade de vida. Osprodutos que estruturam a sociedade atual em todos os seus âmbitos seapresentam como modo de vida indispensável.Eles se difundem em esferas cada vezmais amplas que incluem, sob a ilusão de uma ?democracia do consumo?, asdiversas parcelas sociais, seja pela lógica do barateamento dos produtos, dasimplificação, da imitação ou da falsificação.

Mas se as pessoasconsomem é porque os produtos respondem aos seus anseios individuais?

O desejo estimulado pelos produtos bons e belos para oconsumo se torna a origem primeira do modo de vida consumista. O desejo,inerente à alma humana, com seu dinamismo ilimitado, lança os indivíduos àbusca da satisfa-ção plena no consumo. O mercado responde à insaciedade dodesejo com dinamismo ágil e criativo, e com seus produtos sempre renovados. Nãohá limite para a renovação dos produtos, tanto quanto para o desejo.

Os produtos se renovam na medida em que o desejo pede algode novo, de melhor para a sua satisfação. O ciclo incessante desatisfação-insatisfação-satisfação tem seu correspondente exato no ciclomercadológico produção-consumo-produção, que adota a regra darenovação-envelhecimento-renovação dos produtos. Eis a ambiguidade inerente àcultura de consu-mo: o desejo não pode extinguir-se para que os produtos nãoacabem e, ao mesmo tempo, o desejo precisa cessar para que o novo produto possaser criado, ou ao menos renovado, mesmo que em sua aparência.

Isso significa que oconsumo cria um círculo vicioso infinito?

Certamente. A satisfação plena é a promessa dos produtos,particularmente daqueles que se apresentam como novos. As marcas de últimageração conferem status aos consumidores, os fazem iguais e integrados aoregime da beleza e da bondade da vida. Os que podem obter a marca autênticapagam por ela qualquer preço. Os que não po-dem, adquirem a marca falsa ou, emúltimo caso, buscam adquiri-la por meios ilícitos. A imitação do desejo cria ailusão da igualdade na medida em que se igualam as aparências, já que naestética do produto ?parecer? se identifica com ?ser?.

Quais asconsequências que isso pode ter em relação aos valores que norteiam a vida daspessoas?

A efemeridade do produto-desejo instaura, cada vez mais, aefemeridade dos valores úteis ao bem-estar, mesmo se unicamente estético. Oefêmero predomina como linguagem e como regra de vida, absorvendo em suarenovação a eficácia dos produtos e os significados comuns da vida e, até mesmo,os valores mais fundamentais. É o que ocorre com os valores duradouros, como asfinalidades éticas da vida, como a alteridade. Fora do ?eu desejoso?, não háproduto que resista como necessário e como bom para a vida. O que reproduzir alógica hedonista e reforçar o bem-estar do eu sobreviverá como verdadeiro, bome belo.

Então, estamos numacultura sem valores?

Não estamos dentro de uma cultura sem valores, mas de umacultura que adota como valor aquilo que pode rever-ter em bem-estar individual,mesmo quando se trata de valores reconhecidamente tradicionais. Lipovetskydenomina essa postura de ?ética indolor?, ou seja, adota-se como valores aquiloque não exija sacrifício e que possa reforçar o bem-estar para o consumidor.

A efemeridade dos produtos e da satisfação ocorre como ummovimento incessante. Isso é necessário para que a roda da fortuna mercantilpossa girar com maior eficácia, produzindo mais lucro na mesma proporção eritmo que gira a roda do desejo, gerando, de sua parte, maior satisfação.

Como se dá essasedução do produto?

A estética dos produtos é sedutora e estrutura-se, comoafirma F. W. Haug, como uma verdadeira indústria da sensualidade que ligasexualidade, degustação, estética visual e auditiva e aromas. Até mesmo ascoisas mais sagradas começam a ser crivadas pelo critério da sensualidade: oque não causar boas sensações será descartado como obsoleto, desnecessário enegativo. A cultura hedonista é imediatista, inclui em seus valores aquilo quesatisfaz agora, que encanta imediatamente. Ficam descartados os valoresutópicos, as regras de vida, as reservas de sentido e as atitudes altruístas. Ovalor estético se torna valor ético. O ?parecer? se torna ?ser?.

Qual deve ser aatitude dos cristãos nesse contexto de cultura de consumo?

A sedução do modo de vida do consumismo, que entra pelosnossos sentidos e se apresenta como direito e dever de bem-estar e de qualidadede vida não se apresenta como negação da fé, como ateísmo professo, mas comonormalidade, como valor. Com efeito, seu epicentro hiperindividualista tragasorrateiramente nossos desejos e nossos sonhos, inclusive os mais sagrados.Nesse sentido, adquire características religiosas como sistema carregado dedivindades e atos de fé.

Contudo, é da essência do cristianismo ?o anúncio dasalvação a todos os povos e até os confins do mundo?. Não é necessárioapresentar as bases teológicas da relação entre Igreja e mundo para que seafirme essa postura. A origem histórica do cristianismo é a demonstração dessasua vocação fundante: o diálogo e a autoconstrução. A sociedade é o lugar davida cristã e é na relação com esse meio que a mensagem do Evangelho constróios modos de convivência.

O que a experiênciacristã tem a dizer de novo numasociedade hiperconsumista?

Mesmo estando inserido na sociedade e dialogando com ela, ocristianismo se apresenta como um modo de vida específico, como um tipo desociedade a ser construída e que tem a relação com o outro como fundamentoprimeiro. A lei do amor carrega uma dinâmica ética e social que estabelece arelação com o outro como caminho e salvação. Não se trata de negar o eu emfunção do outro (aniquilação do eu) e nem de negar o outro em função do eu(individualização).

O Evangelho apresenta a proposta da construção de um modo deser que liga cada pessoa com o semelhante, com Deus e com o mundo, ou seja,construção de vida comunitária, estabelecimento de normas, mediação para oconhecimento de Deus, acolhimento das diferenças externas à comunidade. Essaparece ser a nova notícia sociorreligiosa do Novo Testamento. Daí nasce umacultura cristã que podemos chamar de cultura da fraternidade.

Qual a característicafundamental dessa cultura da fraternidade?

Não há receita pronta para o modo de organizar socialmente acultura da fraternidade. Em outros termos, a fé deve encarnar-se em cadarealidade e no diálogo crítico e criativo com ela apresentar-se como viável oumesmo alternativa. Em cada contexto, respondendo aos desafios advindos dele éque a cultura da fraternidade pode ser construída e oferecida como um modo devida para a sociedade.

A cultura atual, com todos os seus processos de alienação ede redução do ser humano, ainda é portadora de valores humanos e cristãos,sabendo que esses valores não se opõem, mas constituem faces de uma únicarealidade, sob pena de separar o autenticamente humano do autenticamentecristão.

Podemos falar em ganhos na consciência do homem moderno, oque se detecta em meio às ambiguidades modernas, normalmente na cultura deconsumo hedonista e idolátrica. São ganhos políticos e culturais que revelamimplícita ou explicitamente a humanidade em sua condição real: em seus anseiosprofundos, em seus limites e em suas possibilidades.

Então, nessecontexto, qual seria o papel dos cristãos?

Trata-se de discernir em meio ao hiperindividualismo e aohiper-hedonismo frestas por onde eclodem valores, por onde se manifesta o que éautenticamente humano, ainda que de forma invertida, ainda quefragmentariamente. Acreditamos em um humano que geme em dores de parto paragerar a si mesmo em meio às reduções desumanizadoras; trata-se de um humano emconstrução na consciência da autonomia, de suas próprias insatisfações e de suarelação com a pluralidade e a diferença.

Qual deveria ser oespaço de construção desse sujeito livre e consciente?

A formação do sujeito cristão é o projeto pedagógico dacomunidade de fé, ele se efetiva na transitividade do ?eu? para o ?outro?, oque se concretiza nas relações internas da comunidade e nas relações dessa e decada um com o mundo. A noção de sujeito cristão supera as experiênciasespirituais individualistas e os coletivismos eclesiais que aniquilam asli-berdades, mesmo que em nome de mandamentos divinos ou de normas superiores.A subjetividade cristã é dom que advém da fé em Jesus Cristo, tarefa de cada ume da comunidade, e, ao mesmo tempo, projeto para todos. A imagem paulina dosmembros do mesmo corpo representa essa dialética construtiva entreindividualidade e comunidade, de onde emerge o sujeito livre e responsável.


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