Formação

Êxodo: uma experiência de fé

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A experiência de Israel que saindo da dura servidão no Egito, percorre o deserto rumo a Terra Prometida, não é significativa apenas para os judeus, mas também para nós, cristãos.Na leitura do livro do Êxodo, uma primeira consideração importante, é o fato de que unido ao desejo de alcançar a Terra Prometida, onde Israel poderá finalmente gozar de liberdade e independência; está o desejo de “servir a Deus”. A ordem que Deus transmite ao Faraó por meio de Moisés é: “Deixai partir o meu povo! Para que me sirva no deserto!” (Ex 7,16). Ao todo são quatro vezes que estas palavras se repetem (Ex 7,26; 9,1; 9,13; 10,3), demonstrando a importância do argumento.

O que se tem em vista não é somente a conquista da Terra Prometida, mas a possibilidade de servir a Deus como Ele quer ser servido. Israel parte, não para ser um povo como um outro qualquer, mas para servir a Deus. A meta que quer alcançar é a montanha de Deus, até então desconhecida, para nela poder servir o Senhor.

Alguém poderia dizer que este argumento fora utilizado por Moisés como estratégia para tirar o seu povo da dominação de Israel. Mas, acompanhando a longa caminhada do povo pelo deserto compreende-se que terra e culto estão intimamente ligados. A terra sonhada e esperada por Israel será a terra destinada ao serviço do Senhor, onde o povo que nela reside poderá viver como Deus deseja, na liberdade e na justiça.

No Sinai, porém, Deus dá ao seu povo não só as cláusulas da Aliança (os dez mandamentos), mas as normas que devem reger o culto a ser-Lhe oferecido (cf. Ex 20, 1-17; 24). Vida e culto estão intimamente ligados! Como diz Santo Irineu: “A glória de Deus é o homem vivo; a vida do homem significa olhar a Deus”.

Esta constatação nos faz ver que o culto que Deus deseja do seu povo não se limita a gestos rituais (embora não prescinda deles), mas envolve toda a vida. A vida vivida na fé, na liberdade e no amor é a liturgia querida de Deus para o seu povo, em razão da qual Ele lhe dá a Sua Terra.

Um segundo aspecto que merece a nossa atenção é a experiência do deserto.  No comentário que faz ao texto, na “Bíblia do Peregrino”, Luís Alonso Schökel chama atenção ao fato de que o deserto é o “lugar desamparado, que reduz o povo às necessidades elementares da subsistência e o põe à prova, para que conquiste a partir de dentro a liberdade que lhe foi dada. Tempo intermédio de dilação, para forjar a resistência e cultivar a esperança, para viver da promessa depois de ter experimentado o primeiro favor”, ao mesmo tempo: “Também essa etapa se torna padrão de futuras peregrinações por outros desertos, à conquista da liberdade e da esperança.” (p.135)

Na longa peregrinação pelo deserto, Israel é levado a reconhecer o Senhor como o protagonista da sua história. Nas muitas provas que sofre é sempre Deus quem age e dá solução aos seus dramas: transforma a água salobra em água potável (Ex 15, 22-27), envia o maná como alimento (Ex 16), faz brotar água da rocha (Ex 17,1-7), garante a vitória sobre os seus inimigos (Ex 17, 8-16), e faz Moisés reencontrar com a sua família (Ex 18, 1-22).

Como Jetro, podemos, então, exclamar: “Bendito seja o Senhor, que vos livrou do poder dos egípcios e do Faraó. Agora sei que o Senhor é o maior de todos os deuses, pois, quando vos tratavam com arrogância, o Senhor liberta o povo do domínio egípcio.” (Ex 18,11).

No encontro de Jetro com Moisés é importante ressaltar, o fato de que o que podia ter acabado num relato de viagem toma a forma de um ato litúrgico “quase como proto-eucaristia”, como observa Schökel no comentário ao texto, na Bíblia do Peregrino. Jetro é apresentado como “sacerdote de Madiã” (18,1). O Lugar é “o monte de Deus” (5), o oficiante, é o próprio Jetro; que faz a memória (anamnese) de fatos como ações divinas: “tudo quanto fez Deus/o Senhor” (1.8.9); que se traduz em exultação e benção = ação de graças (eucaristia), por “todos os benefícios…” bendito Yhwh (9-10); num sacrifício e banquete sagrado (comunhão), “na presença de Deus” (12).

Ao fazermos nós a leitura destes capítulos, o fazemos à luz do Mistério da Páscoa de Jesus Ressuscitado. Os evangelistas falam dos êxodos praticados por Jesus: quando sobe decididamente a Jerusalém a fim de sofrer a Paixão (cf. Lc 9,51) e, quando entra no mistério da sua Paixão passando deste mundo para o Pai, depois de ter amado os seus até o fim (cf. Jo 13,1).

Sem retirar o valor que tem o relato do Êxodo para as comunidades que percorrem, ainda hoje, os caminhos do deserto, esperando alcançar a Terra Prometida, onde a liberdade e a vida plena sejam garantidas para sempre; compreendemos que o êxodo que devemos percorrer é o mesmo que percorreu Jesus, a fim de passar com Ele, da morte para a vida!

Israel encontra-se com o Deus que o fortalece na esperança, que o educa na fé e na confiança, que espera dele um culto que seja não só rito, mas também vida, expressão da fidelidade à Aliança (cf. Ex 15, 26). Nós também encontrando-nos com Jesus, vemos que as exigências que Ele faz aos seus discípulos (Mt 5-7) não são menores daquelas que Deus dá a seu povo na caminhada do deserto, ao revelar-lhes o Reino, cuja exigência é um culto “em espírito e vida” (cf. Jo 4,23).

Na “liturgia” de Jetro não é difícil vislumbrar um anúncio e profecia da Eucaristia, memorial da Nova e Eterna Aliança.  Hoje, ao redor da mesa eucarística, fazemos também nós a experiência do encontro com o Senhor que liberta, que não dá somente água e pão para o seu povo, mas o Corpo e o Sangue do seu Filho, garantia da Páscoa definitiva, quando  Deus será tudo em todos!

Nos muitos desertos do nosso tempo, somos convidados pelas palavras do Êxodo a experimentar o Deus próximo que ouve o clamor do seu povo e vê os seus sofrimentos (Ex 3,7-9), e envia o seu Filho para ser um “novo Moisés” a conduzir-nos à Terra Prometida, da justiça e da paz!

“Existem tantas formas de deserto. Há o deserto da pobreza, o deserto da fome e da sede, o deserto do abandono, da solidão, do amor destruído. Há o deserto da obscuridão de Deus, do esvaziamento das almas que perderam a consciência da dignidade e do caminho do homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores tornaram-se tão amplos. Por isso, os tesouros da terra já não estão ao serviço da edificação do jardim de Deus, no qual todos podem viver, mas tornaram-se escravos dos poderes da exploração e da destruição. A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo, devem pôr-se a caminho, para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude” (BENTO XVI, Homilia, 24-04-2005).

Valem para nós as palavras de Isaías: “O deserto e o ermo se regozijarão, a estepe florescerá de alegria… Fortalecei as mãos fracas, robustecei os joelhos vacilantes. Dizei aos covardes: Sede fortes, não temais, olhai o vosso Deus, que traz a desforra, vem em pessoa, ele vos ressarcirá e vos salvará.” (Is 35,1a,3-4).

Caminhamos no deserto confiantes que um dia ele se transformará em jardim, certos de que toda amargura cederá lugar à verdadeira alegria.

Dom Milton Kenan Junior

Formação/2011


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