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Quem ama, primeireia

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Lembro-me de ter encontrado o Papa Francisco pela primeira vez na Praça de São Pedro, logo após sua eleição como novo Sumo Pontífice. Na ocasião, perplexa e ainda desacostumada à sua simplicidade e genialidade, ouvi-o dizer preferir uma Igreja ferida e acidentada, por sair em busca dos que vivem nas “periferias existenciais” por não conhecer Jesus, a uma Igreja intacta, sem feridas, que vivesse trancada, individualista, ensimesmada. Na ocasião, deu o exemplo de um quarto permanentemente fechado e, por isso, repleto de bolor, mofo, fungos, dizendo que não queria uma Igreja assim.

Era, talvez, a primeira ocasião em que, como papa, referia-se à “Igreja em permanente estado de saída”. Logo depois, criaria um dos seus mais famosos neologismos para referir-se a essa Igreja-que-sai: “Primeirear”.

Na sua famosa “Alegria do Evangelho”, esclarece que “primeirear” é tomar a iniciativa, sem medo, ir à frente, ir ao encontro, procurar os afastados, chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos, no desejo inexaurível de oferecer a misericórdia de Deus. (cf. n. 24). Fantástico! Faz-me lembrar da pregação inesquecível do padre Jonas Abib, em Fortaleza, décadas atrás, quando nos explicava que “quem ama, toma a iniciativa”. Em termos atuais, padre Jonas diria: “quem ama, primeireia”.

Francisco explica que “primeirear” é, exatamente, amar. E amar tanto, tão inexaurivelmente, tão intensa e desmesuradamente que, por amor, antecipa-se à necessidade do irmão, como uma mãe que, pressentindo o perigo, antecipa-se à queda do filho e a evita. É amar tão loucamente a ponto de meter-se na lama em que vive o outro para retirá-lo de lá. É amar com a lógica da encarnação do Verbo.

Ensina, também, que “primeirear” supõe envolver-se, uma vez que o amor sempre se envolve. É que, para Francisco, como para Jesus, a evangelização supõe envolvimento pessoal, encarnação, arranhões, feridas, chacotas e chicotes, cusparadas, desprezo, menosprezo, cruz e, finalmente – porém, exatamente por causa dela – ressurreição.

Pego-me a matutar quantos homicídios físicos e morais, quantas dependências químicas, quanta corrupção, quantas mortes, quanto desespero e solidão teriam sido evitados se alguém tivesse se envolvido e “primeireado” no amor, na compaixão, no socorro, na misericórdia! Quantos abandonos da fé teriam sido evitados se alguém apenas tivesse primeireado, tomado a iniciativa, se arriscado para chegar primeiro, antes do traficante, antes da bala, antes do desamor, antes do abandono, antes da tentação, antes da decepção, antes da desilusão, antes da exclusão. Antes! Antes! Antes!

São João ensina-nos que Deus nos amou primeiro. Que Ele se envolveu, ao fazer-se homem. Arriscou-se de várias formas ao chegar ao poço antes da Samaritana e, sem medo de “invadir sua privacidade”, mergulhar em sua lama. Ou ao incitar a ira dos fariseus e dos doutores da lei com a loquacidade silenciosa de seus milagres. Amou-nos primeiro, por isso se fez homem, por isso “primeireou” a Samaritana, por isso curou os enfermos, por isso era tão simples, por isso morreu. Por isso, ressuscitou, “primeireando” nossa ressurreição!

Fico a pensar em nós que insistimos em nos encher de vãs filosofias, de intrincadas burocracias, empanturrar nosso tempo em inúteis administrações e em todas elas nos encastelar, como se isso comprovasse nosso árduo trabalho e como se isso fosse evangelizar. De fato, tal trabalho é árduo. Porém, talvez tão árduo quanto estéril! São D. Bosco tem a resposta libertadora: “Dai-me almas e ficai com o resto! ” Ficai com vossas elucubrações, com vossas teorias, com vossos “deveriaquerismos” – outro neologismo de Francisco que significa “entretermo-nos, vaidosos, a falar sobre ‘o que se deveria fazer’ como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora”. Sobre essa forma de usar nosso tempo, que não nos deixa feridos pelo envolvimento do amor, conclui nosso excepcional, simples e direto pontífice: “Cultivamos a nossa imaginação sem limites e perdemos o contato com a dolorosa realidade do nosso povo fiel”.

Que teria sido de mim se alguém não se tivesse arriscado a ferir-se por amor a mim? Onde estaria eu hoje? Ao que tudo indica, na vida mais medíocre que se possa imaginar, a adorar meu próprio umbigo. Que teria sido de você, leitor, se alguém não se tivesse arriscado a primeirear sua vida por amor a você? E, caso isso nunca tenha acontecido, já lhe pedindo perdão por minha omissão, insisto em perguntar que será de você se ninguém primeirear sua vida?

Nossa tendência comodista é uma “evangelização antisséptica” – para introduzir expressão que bem poderia ser do Papa. Uma evangelização sem riscos, sem envolvimento, planejada para resguardar as fronteiras de nossa zona de conforto e nossa “eficácia”. Ou, por outra, argumentar que evangelizar é “para os padres e missionários”. Nesse pingue-pongue de responsabilidades é que se criam, decepcionadas, desoladas, as “periferias existenciais”. Desse pingue-pongue é que nós, discípulos missionários, vamos – aqui, sim, há risco!- prestar contas!

Foto: Primeiro encontro do fundador da Comunidade Católica Shalom, Moysés Azevedo, e da cofundadora, Emmir Nogueira, com o Papa Francisco, por ocasião da celebração do Pentecostes em maio de 2013, no Vaticano.

 

Maria Emmir Oquendo Nogueira
TT @emmiroquendo
Facebook/ mariaemmirnogueira
Coluna da Emmir – comshalom.org
Entrelinhas – Revista Shalom Maná


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