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São João da Cruz: o Doutor místico

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“Quem pode subir à montanha do Senhor? Quem pode ficar de pé no seu lugar santo? Quem tem as mãos inocentes e coração puro, e não se entrega à falsidade, nem faz juramentos para enganar.” (Sl 24,3-4)

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Ícone de São João da Cruz (Guadalupe Cabral – Capela da Diaconia da Comunidade Shalom)

Com estas palavras, o Salmo 23/24 espelha e descreve um preciso itinerário de fé a ser percorrido para alcançar a habitação de Deus. É preciso ter mãos inocentes, conduta íntegra, um coração purificado para poder subir ao cume do “monte do Senhor”. Esta grande “escalada” de perfeição, percurso que, sem dúvida, não é fruto de um “voluntarismo” do homem e nem pode ser feito sem a graça e a misericórdia divinas, é apresentada e simbolicamente representada em toda a teologia mística do grande doutor carmelita São João da Cruz. A perfeição consiste na caridade, verdadeira força moral que pode orientar o coração humano à realização plena de sua vida. Mãos inocentes e coração puro são, enfim, fruto do amor.

Este santo nos ensina, então, que através das excelentes vias da fé, da esperança e da caridade, o homem sobe até a morada de Deus. O caminho da vida é, então, aquele constante unir-se a Deus, um “empenhar” todo o ser na busca incessante de uma santidade correspondente ao alto chamado que Deus faz a cada um de nós. Graça de Deus e livre adesão do homem se encontram. É Deus quem concede o dom de crer, esperar e amar, e a pessoa humana adere a estas graças-virtudes empenhando sua liberdade para subir rumo a uma perfeição mais alta, a perfeição de caridade. Seja homem ou mulher, casado ou consagrado, a perfeição reside no amor que se acolhe de Deus e que se torna vida em nossa vida.

São João da Cruz: um santo “filho do seu tempo”

O “Doutor Místico” é uma das grandes “pepitas de ouro” a garimpar no grande “rio” da história da Igreja, especialmente no decorrer do desafiante século XVI. Neste período, a Igreja Católica se deparou com os ferventes movimentos protestantes que estavam se desencadeando, vendo-se assim diante de uma imperiosa necessidade de defender e reafirmar a fé e a Doutrina, de se posicionar com máximas clareza e exatidão diante das distorções reformistas que se espalhavam indiscriminadamente naquele tempo.

Sim, falamos do século do nascimento do Protestantismo, marcado pela divisão e pela ideia luterana de uma “fé pessoal”, autônoma, subjetivista. Fé de um indivíduo que pode dispensar o que é objetivo, sacramental e dogmático para aventurar-se em uma fé “toda sua”, em um crer pessoal e descontextualizado que o justificaria sem as obras, sem o necessário esforço do amor, sem a meritória escolha da vontade que concede à liberdade do homem a possibilidade de sua participação na vida divina. O Protestantismo introduz na Teologia uma lógica, por assim dizer, “individualista”, na qual uma livre interpretação – por que não dizer manipulação – da Palavra de Deus e uma distorcida concepção de uma “relação pessoal” com Deus dispensasse todo aquele “crer comunitário” da Igreja, o seu Magistério e a sua Tradição viva, verdade confiada por Cristo aos apóstolos.

Além do mais, a ideia protestante fazia repousar um forte pessimismo sobre o mundo humano, alegando que a pessoa humana, mortalmente ferida pelo pecado, não poderia em nada participar da obra da Salvação. Tudo dependia da graça, mas não porque se acreditava no “primado da graça” em si, mas porque o homem, “culpado”, era doravante incapaz do bem, incapaz de Deus, a sua natureza seria irrelevante no processo da Redenção. Entra aí o veneno que anula a liberdade do homem, que confere mornidão às obras próprias do amor. Lutero introduz uma forma de relação pessoal com Deus que “desumaniza” o homem, roubando dele a sua capacidade de transcender em seus atos e escolhas, tornando-o como que uma marionete de uma “graça divina” que não leva em conta a natureza livre do homem. E esta não é a verdade sobre como Deus escolheu agir na História!

Santos: resposta do Espírito

Neste ambiente historicamente e teologicamente tumultuoso, desafiante e escuro, existiam não só os óbvios e claros ataques à fé e à Igreja, mas sutilmente surgia um ataque ao próprio homem e à sua dignidade e capacidade de união com Deus. Uma “graça divina” que anulasse a natureza humana e a sua liberdade não seria coerente com o próprio projeto divino manifestado desde a Encarnação do Verbo. Deus se tornou homem para unir-se a este homem! Nisto reside o coração da teologia mística do santo sobre o qual tratamos aqui. Cristo-Esposo vem buscar a sua Esposa (a Igreja e cada alma) para dignificá-la e recuperar a santidade roubada pelo pecado e não somente para “justificar” exteriormente aquele homem pecador “incapaz de mudar”, como pensava Lutero.

A graça transforma o homem “por dentro” e faz deste homem capaz de união com Deus. A graça não justifica a natureza sem transformá-la. Esta transformação é, em outras palavras, aquele belo processo de “purificação” no qual, segundo a terminologia de João da Cruz e da tradição carmelita, Deus vai despojando a alma de todos os obstáculos à união perfeita com Ele, submetendo a alma, assim, a um doce caminho de “divinização”, uma elevação do humano ao divino.

Todavia, em um século extremamente conflituoso brota uma generosa resposta do Espírito: os santos! Aquele também se tornou em contrapartida o “século dos santos”, resposta providencial da graça para uma História que não é uma mera sucessão do tempo e dos fatos, mas que é, antes de tudo, “História da Salvação”. Neste tempo, a Espanha presenteou a Igreja e o mundo com três (para não citar tantos outros) dos maiores santos místicos de todos os tempos: Inácio de Loyola, Teresa de Ávila e João da Cruz.

Falar de São João da Cruz fora deste contexto histórico e eclesial talvez nos impedisse de reconhecer e colher globalmente a luminosidade de sua doutrina. Certamente, seus escritos e ensinamentos ultrapassam aquele tempo histórico e continuam a ser, nas mãos do Espírito Santo, fonte de graça e de experiência de fé na vida da Igreja de hoje e de todos os tempos, mas é muito significativo tocar na gênese da experiência mística de um santo como experiência encarnada na História. O que Deus dá a um santo e opera na sua vida é sempre “pela Igreja”, e não se trata de uma experiência estritamente pessoal, embora aquele santo seja a “sede” de tal experiência. Deus santifica um homem ou uma mulher em vista da santificação de todo o seu povo eleito. Foi exatamente isso que Lutero não entendeu profundamente. A Reforma que Deus queria e suscitava era aquela “interior”, a partir do coração da Igreja, em unidade com ela, e não “de fora para dentro”, como uma afronta à Tradição.

Costuma-se utilizar o termo “Contrarreforma” para designar a reação da Igreja Católica diante dos ataques da Reforma Protestante. Porém, creio que este termo, que porta certo tom apologético e até mesmo reacionário, não seja ainda o mais adequado para falar do dom e da força que Deus concedeu à sua Igreja frente às manobras do Protestantismo.

Se existia uma “Reforma” exterior e adversa à catolicidade, ao mesmo tempo acontecia – mais do que uma “Contrarreforma” – uma “Reforma Interior” que Deus realizava e com a qual ornava, a partir de dentro, a sua Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica! Teríamos que, praticamente, mudar o título e o intento deste presente artigo para nos debruçarmos sobre as maravilhas que Deus começou a operar na Igreja “a partir de dentro”. Enquanto explodia aquela “barulhenta” Reforma Protestante, tantos santos e novos fundadores prepararam e favoreceram este silencioso e fecundo tempo de “reforma interior” com a qual o Senhor tecia a Igreja, período que culminou, na Idade Moderna, com o Grande Concílio de Trento.

Cabe-nos aqui, todavia, seguindo os passos de João da Cruz, ater-nos à grandiosa experiência espiritual do “Carmelo Reformado”, potente resposta de Deus à crise espiritual e teológica de então, obra de Deus delegada a uma grande mulher – Teresa de Ávila – que contou com a imprescindível ajuda de um pequeno-grande homem: “Juan de Yepes” (nome de batismo do nosso santo).

Reforma do Carmelo

Não foram poucas as perseguições e contrariedades sofridas por João da Cruz e Teresa de Jesus quando decidiram empreender uma reforma na Ordem do Carmelo. Tendo abraçado a vocação carmelita aos vinte e um anos de idade, João sente o clima de mitigação então existente na Ordem. Naquele tempo, toda a Igreja sentia o peso e o odor da mornidão na prática da vida cristã: muitos sacerdotes e religiosos tinham se afastado do alto ideal de santidade que o Evangelho propõe. Muitos mosteiros religiosos tinham transcurado aquele estilo de vida evangélico radical e tinham se tornado lugares “cômodos”, marcados por uma infecunda frieza espiritual.

Insatisfeito com esta tibieza que tinha tocado também a Ordem Carmelita, João de São Matias (primeiro nome religioso abraçado pelo nosso santo) considerou seriamente a possibilidade de transferir-se à Ordem dos Cartuxos, marcada por uma vivência e um ideal religioso muito rígidos.

Contudo, Teresa de Jesus, em Ávila, empreendia uma sua “reforma” o “Carmelo descalço”, uma renovação da radicalidade na vivência daquela vocação específica, e convence João a unir-se à sua causa de reforma da Ordem, estendendo-a ao ramo masculino. O Carmelo Descalço, então, pode ser visto como uma daquelas respostas providenciais do Espírito Santo, como dissemos acima, que gerava dentro da Igreja – não obstante a mediocridade de alguns cristãos e dos ataques protestantes – um forte movimento de renovação do fervor e da santidade dos seus membros.

Teresa e João tornam-se, por assim dizer, mãe e pai espirituais do Carmelo Reformado. Ao Protestantismo e à rebelião suscitada por este movimento, os santos dão uma resposta de absoluta fidelidade às origens da Igreja, cujas raízes estão plantadas na radicalidade evangélica proposta e vivida por Jesus Cristo. Não seria uma “releitura teológica” luterana ou uma nova proposta eclesial calvinista a “salvar” a Igreja das mitigações e dos pecados de seus membros, mas o retorno radical à relação com Cristo, Esposo e Cabeça da Igreja, que faz correr nas veias do povo de Deus a seiva da Sua santidade.

O Carmelo Reformado é, sem dúvida, fruto de uma livre ação do Espírito Santo, mas também resultado de uma resposta positiva de Teresa e João às inspirações de Deus. Assim como o sim da Virgem Maria permitiu que o Eterno tocasse o tempo com a Encarnação do Verbo, o mesmo movimento de “encarnação” da graça na História dos homens continua passando pela liberdade do povo de Deus para poder se atualizar e “tomar corpo”. João da Cruz, colaborando ativamente com a obra de reforma teresiana, foi fundamental no processo de implantação daquela inspiração. Alguns conflitos de ordem política e eclesial com os carmelitas de antiga observância (que não aderiram à reforma iniciada por Teresa de Ávila), repercutiram em grandes perseguições internas sofridas pelo nosso santo e também por Teresa, mas em tudo agia a Providência de Deus, que de cada experiência de Cruz, sabe como nos fazer colher a ressurreição.

 

*Artigo originalmente publicado na Revista Shalom Maná

 

Cristiano Pinheiro
Missionário da Comunidade Católica Shalom


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