Uma reflexão sobre a multiplicação dos pães
Ante as multidões, semelhantes a ovelhas sem pastor, Jesus delas tem piedade e compaixão. Pessoas abandonadas, entregues à ignorância, negligenciadas por aqueles que lhes deveriam fornecer o alimento da verdade e os cuidados do pastor. Um povo que submerge na desorientação. E a atitude do Senhor ante aquela carência é ensinar-lhes muitas coisas. A missão da Igreja será ensinar muitas coisas, irradiar a verdade, soltar-lhe as asas a fim de que ilumine, liberte, promova, salve. A Igreja é mestra, não por ser dona da verdade, mas guardiã desta verdade que recebeu de seu divino Fundador. Não seguirá os modismos, não se sujeitará as alternâncias dos tempos e as consequentes flutuações das mentalidades, onde os critérios de certo e de errado, de bem e de mal oscilam fortemente e se adaptam às conveniências momentâneas dos indivíduos e dos grupos sociais, bem como dos sistemas econômicos, das ideologias falaciosas e interesses políticos os mais diversos. João Paulo II, a esse respeito, afirmou de forma cabal:
“Sendo assim, não se trata de inventar um ‘programa novo’. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para nele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até a sua plenitude na Jerusalém celeste. É um programa que não muda com a variação dos tempos e das culturas, embora se tenha em conta o tempo e a cultura para um diálogo verdadeiro e uma comunicação eficaz. Esse programa de sempre é o nosso programa (…)”. (Novo Millennio Ineunte, 29).
Ensinar: missão da Igreja que, não pode esconder a luz, mas fazê-la iluminar para que as boas obras promovam o louvor e a glorificação de Deus (cf. Mt 5,14-16). Não somente ensinar, como também promover integralmente as pessoas. A promoção humana sempre fez parte da missão da Igreja, pois esteve profundamente presente na missão de Jesus. O trabalho com os pobres, excluídos, com os doentes e sofredores de todo tipo nunca faltará na vida da comunidade eclesial. Lembra-nos o apóstolo: “Se alguém, possuindo os bens deste mundo, vê o seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração, como permanecerá nele o amor de Deus?” (1Jo 3,17). O mesmo nos faz Bento XVI: “Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de atividade de assistência social que se poderia deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão da sua própria essência” (Deus Caritas Est, 25).
O lugar onde a multiplicação dos pães acontece é deserto e a carência de recursos leva os discípulos a pensar em soluções onde a pobreza dos meios, os isentaria de certas responsabilidades ante as pessoas. É fácil renunciar ao compromisso, deixar de lado o engajamento, não se comprometer. A missão nos transcende, as exigências das urgências nos ultrapassam. Mandar aos povoados parece sempre uma solução mais fácil, razoável, cômoda de modo a desembaraçar do imbróglio. Na contramão desta mentalidade, imbuída de absentismo, o Senhor lança um desafio e tanto: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.
Noutras palavras, assumam o desafio de ir ao encontro das necessidades destas pessoas e vivam o protagonismo que lhes cabe neste processo. Não fiquem estacionados nos limites, mas enxerguem na presença de Deus, as possibilidades que lhes são concedidas a fim de que a Providência vá ao encontro das pessoas através de vocês. Ante tal imperativo, os discípulos se acham mergulhados em uma mentalidade monetária, calculista: falam em cifras. O verbo comprar não dá lugar ao verbo partilhar! Jesus, ao invés, fala em partilha, em comunhão de bens, em generosidade, assinalando com clareza que o pouco com Deus é muito. “Quantos pães tendes? Ide ver”. É preciso verificar sem medo nossos meios e posses e descobrir com serenidade que somos pobres, nossos recursos efetivamente nunca são suficientes. “Cinco pães e dois peixes”. Sem comentários! Entretanto, apresentá-los ao Senhor, pedir sua bênção e pô-los à sua disposição haverá sempre de ser um gesto corajoso de fé, fonte de milagrosas surpresas, pois Deus sabe surpreender quem nele confia. Para alimentar, as multidões foram divididas em grupos, para facilitar a distribuição: alguém consegue intuir a importância dos pequenos grupos e comunidades dentro da Igreja para gerar crescimento e partilha? Sentados na verde grama, as pessoas lembram as ovelhas que são alimentadas pelo bom pastor que as conduz para os bons pastos (cf. Sl 23(22),2).
Sentar-se é o gesto dos convidados para um banquete. Realizando um gesto eucarístico de dar graças e pronunciar a bênção, Jesus partiu os pães. Partir é base para o repartir. Para repartir, Jesus se serve da mediação de seus discípulos. Não é para estranhar esta metodologia do Divino Mestre que não cessa de servir-se de tal mediação para conceder seus dons a seu povo. Por isso, não é possível pensar uma caminhada de Igreja sem assumir, com vigoroso espírito de fé, a obediência e, por conseguinte, uma nítida visão sobrenatural daqueles que nos conduzem, em nome do Senhor. Estes haverão de partilhar o pão que receberam das mãos do Mestre. E destas mãos frágeis, seremos alimentados pelo próprio Deus.
E o resultado foi surpreendente: “Todos comeram e ficaram satisfeitos”. Claro, sempre haverá saciedade quando se entende que a medida vem de Deus. Ele sabe o que nos dá e o que nos nega. Mas, conta conosco para que seus desígnios salvíficos se cumpram e sua providência alcance a todos os que Ele deseja alimentar através de nossa pobre contribuição. Recolheram doze cestos, cheios de pedaços de pão e também dos peixes. Simbólico, emblemático, significativo: doze! Número cósmico das doze tribos e dos doze apóstolos e das doze estrelas da mulher do apocalipse! Indica plenitude que brota da responsabilidade (palavra que significa habilidade em responder). Vai, e também tu, faze o mesmo (Lc 10,37): Dá-lhes tu mesmo de comer!
*Artigo originalmente publicado na Revista Shalom Maná
Padre Marcos Chagas
Missionário da Comunidade Católica Shalom