Formação

Pe. João Chagas: nós somos a voz do Ressuscitado que passou pela cruz

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Confira na íntegra a pregação do padre João Chagas, missionário da Comunidade de Vida Shalom e responsável pela seção Jovem do Pontifício Conselho para os Leigos, realizada no Retiro de Semana Santa, 26, em Fortaleza. Foi mantido o tom coloquial.

O silêncio de Deus e a presença de Nossa Senhora no Mistério Pascal

Pe. João Wilkes

Boa tarde! Todos nós estamos aqui nesses três dias do Tríduo Pascal para contemplarmos aquilo que Jesus operou por nós no mistério da Sua Paixão, Morte e Ressurreição. Mas ao mesmo tempo somos chamados a perceber aquilo que na nossa vida vai acontecendo a cada dia desse Mistério Pascal. Esse mistério que celebramos no Tríduo Pascal acontece não só fora de nós, não é só um mistério que contemplamos nos ícones ou quando escutamos uma pregação, mas é algo que diz respeito a nossa própria vida e que vamos vivendo também. Nós também vivemos a cada dia realidades de Paixão, de Morte e de Ressurreição na nossa vida.

Pessoalmente tenho vivido isso de maneira muito concreta, porque o motivo da minha vinda aqui para Fortaleza, e como Moysés disse já estou em Roma há 13 anos, mas estou vivendo esse Tríduo Pascal aqui por conta de uma operação de urgência que meu pai fez no dia 10 de março e de todas as consequências também do pós-operatório que estamos acompanhando. Devo estar voltando se Deus quiser amanhã para Roma. Não posso dizer que volto com tudo resolvido. Ainda têm muitos mistérios que vamos contemplando também, realidades da enfermidade e tudo, mas também vamos vivendo isso, vamos percebendo como esse Mistério Pascal vai se reproduzindo também na nossa vida e na vida das pessoas que a nós estão mais próximas.

Vamos tentar fazer um caminho em pelo menos duas etapas: o que é que estamos celebrando hoje, e depois perceber o que é que esta celebração diz respeito a nossa vida concreta. Primeiro: o que estamos celebrando hoje? É um mistério central da nossa fé, e nós sabemos que os mistérios centrais da nossa fé estão contidos no Credo, e hoje nós estamos celebrando mais precisamente duas frases do Credo. Uma que diz que Jesus Cristo foi sepultado, e a outra que diz que Ele desceu à Mansão dos Mortos. Vamos ver o que diz o Catecismo da Igreja Católica, vamos ver o que diz a Palavra de Deus. Depois vamos tentar perceber o que é que esses artigos da nossa fé tocam da nossa realidade de vida hoje.

O artigo 624 do Catecismo diz o seguinte: “Pela graça de Deus, ele experimentou a morte, para proveito de todos nós (Heb 2, 9). No seu plano de salvação, Deus dispôs que o seu Filho, não só morresse pelos nossos pecados (1 Cor 15, 3)”, que foi o que celebramos ontem,“mas também que Jesus experimentasse a morte, durante o tempo compreendido entre o momento em que expirou na cruz e o momento da Sua ressurreição”. É isso o que estamos celebrando. “Este estado de Cristo morto é o mistério do sepulcro e da descida à mansão dos mortos. É o mistério do Sábado Santo, em que Cristo, depositado no túmulo, manifesta o repouso sabático de Deus depois da realização da salvação dos homens, que pacifica todo o universo”.

A passagem de 1 Cor 15, 29 diz que Jesus ressuscitou dentre os mortos. Para que compreendamos a Ressurreição de Cristo, precisamos fazer essa passagem também de mergulhar nesse mistério de Jesus que desce à Mansão dos Mortos. Teve um irmão que antes que eu entrasse aqui disse assim: “Tudo na paz Padre?”, e eu respondi: “Na Paz do Ressuscitado que Passou pela Cruz, ou melhor! Que está passando ainda, porque celebraremos a Ressurreição amanhã, já essa noite na Vigília Pascal”.

A morada dos mortos aonde Cristo desceu, diz o Catecismo no artigo 633, é chamada pela Escritura os infernos, mas não é o inferno como um estado de condenação, mas a mesma palavra que é usada para Sheol, Hades, e é a Mansão dos Mortos, o ugar aonde os mortos estavam antes de Jesus morrer e ressuscitar, porque aí se encontravam aqueles que estavam privados da visão de Deus. O que é o céu? É a visão de Deus. Então aqueles que estavam privados da visão de Deus, porque Jesus ainda não tinha completado a obra de Salvação, estavam na Mansão dos Mortos. Jesus desce à Mansão dos Mortos para libertar todos os justos que o tinham precedido – Davi, Moisés, Abraão- todos os homens e mulheres justos que o tinham precedido. Jesus desce à Mansão dos Mortos para anunciar a salvação. Como diz a 1 Carta de Pedro 4, 6: “A boa nova, o evangelho, foi anunciado por Jesus aos mortos”. Foi isso que Jesus realizou na Sua descida à Mansão dos Mortos. Ele desceu ao abismo da morte para que os mortos ouvissem a voz do Filho do homem, e os que ouvissem essa voz pudessem viver. Isso se encontra em João 5, 25.

Para concluir essa parte da Palavra de Deus e do Magistério. Jesus, o Príncipe da vida, pela Sua morte, reduziu à impotência aquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo, e libertou todos aqueles que por meio da morte se encontravam sujeitos à servidão durante a vida inteira (Hebreus 2, 14-15).

Agora quero passar para uma segunda parte que vai tratar do que isso tem a ver com a nossa vida, e vou me basear, sobretudo, em um escrito do jovem teólogo Joseph Ratzinger, que depois se tornou o nosso querido Papa que hoje é Emérito, Bento XVI. Quando ele era um jovem teólogo escreveu um livro que é um clássico da teologia: introdução ao cristianismo. Ele aprofunda todos os artigos do Credo e tem um ponto onde ele fala da descida de Jesus à Mansão dos Mortos. Ele diz o seguinte: “Talvez este seja um dos artigos da nossa fé que me parece que mais se distanciaram da nossa consciência atual”. Às vezes temos a impressão que isso não tem nada a ver com a nossa vida. A partir daquilo que ele escrevia, dizia: “Vamos aprender a ver que este artigo da fé nos toca hoje muito de perto, que nós podemos ter para com ele uma afinidade muito especial”, e vamos entender por que. Vou falar vários pontos que esse artigo da fé toca a nossa realidade, mas tente ver se você já consegue captar. O que você acha que isso tem a ver com a sua vida, com a vida das pessoas? O que isso diz para nós hoje? Jesus foi sepultado e desceu à Mansão dos Mortos.

Primeiro: o que isso tem a ver com a nossa vida? Isso toca a realidade da morte. O que vem a ser a morte? O que acontece quando alguém morre? Todos têm de reconhecer o nosso embaraço diante desse problema, por quê? Porque ninguém sabe a resposta com exatidão. Todos nós vivemos aquém da morte, ou seja, ainda não morremos, estamos aqui, ainda não provamos o amargor da morte, então não podemos responder com exatidão a essa questão. Mas podemos tentar mergulhar um pouco nesse mistério através do grito que Jesus lançou no momento da Sua morte. O que foi que Jesus gritou? Tem em Marcos 15, 34: “Meu Deus! Meu Deus! Porque me abandonastes?”. O mistério da descida de Jesus à Mansão dos Mortos se faz perceptível a nós como uma luz na escuridão da noite através dessa frase que Jesus pronuncia na cruz. “Meu Deus! Meu Deus! Porque me abandonastes?”.

A pessoa que vive a experiência da morte é como uma experiência de uma profunda solidão, de um grande abandono, porque ela sabe que por aquela porta, que é a porta da morte, ela passará sozinha, a experiência da solidão e do abandono radicais na nossa vida. Mas não nos esqueçamos de que quando Jesus diz essa frase na cruz Ele está recitando um Salmo, o Salmo 22, 2. Essa invocação de Jesus na cruz é a frase inicial de uma oração do povo de Israel na qual se resume de uma maneira tocante a aflição e a esperança do povo. Juntos, ao mesmo tempo, aflição e esperança. É um grito de aflição e de esperança do povo eleito de Deus que se sente abandonado, aparentemente abandonado por Deus no momento mais desolante. Essa oração brota da mais profunda aflição, das trevas em que Jesus se encontrava naquele momento. O Filho de Deus mantêm ainda firme a Sua fé. Jesus está rezando um Salmo naquele momento, mesmo naquele momento mais difícil, enquanto a fé parece ter se tornado uma coisa sem sentido na Sua vida.

Às vezes há momentos em nossa vida, quando vivemos experiências de grandes provas, em que a fé parece não ter nenhum sentido, porque a realidade que estamos vivendo parece falar tudo, menos que Deus está presente. Quando aquele ladrão diz: “Se tu és o Filho de Deus desce da cruz[1]”, onde é que Ele está? Quando a multidão diante da cruz diz: “Se tu és Deus desce da cruz”, onde é que está Deus na tua vida? Quantas vezes escutamos isso de uma maneira ou de outra quando estamos vivendo uma realidade de prova na nossa vida ou quando às vezes pessoas próximas a nós, da nossa família, quando às vezes uma criança morre afogada, onde é que estava Deus nesse momento? Quantas vezes escutamos isso? E é às vezes aquilo que aparenta estar acontecendo, que Deus nos abandonou.

E então, diz o jovem teólogo Ratzinger, “temos ainda necessidade de nos perguntar o que possa representar a oração nesse momento de trevas na nossa vida?” A oração é aquilo que nós de mais significativo podemos fazer nesse momento. Não sei se vocês já ouviram falar disso, mas os Salmos são as orações que Deus gostaria de ouvir de nós e que Ele põe na nossa boca para rezarmos.

Uma vez ouvi uma grande teóloga, estudiosa da bíblia, falando sobre os Salmos, e ela dizia que quando o filho começa a falar, o pai e a mãe pensam que é um milagre, mas também! Depois de você ter passado horas e horas incutindo na cabeça da criança as palavras papai e mamãe, quase obrigando a pessoa a dizer. Quem foi que colocou aquela palavra na boca da criança? Foi o pai e a mãe, ensinando o filho a dizer, porque eles adoram ouvir aquelas palavras. Os Salmos, dizia essa grande teóloga, é como se Deus estivesse fazendo isso conosco. O Pai Nosso, por exemplo, é isso, o Magnificat. As orações bíblicas são aquelas orações que Deus adora escutar quando nós as pronunciamos, e Jesus pronunciou esse Salmo 22 no momento da sua experiência de abandono na cruz. Você já fez essa experiência de recitar em um momento de grande prova onde talvez você não conseguisse nem rezar com as suas próprias palavras, através de alguma oração bíblica?

Vou dar um exemplo. Quando morreu nosso primeiro irmão de comunidade, o Ronaldo, em 1995, quando estávamos no hospital o Moysés repetia continuamente a passagem do livro de Jó: “Deus deu, Deus tirou, bendito seja o nome do Senhor!”. Provavelmente ele estava sentindo no coração tudo, menos vontade assim sensível de louvar a Deus naquele momento, de agradecer a Deus naquele momento, mas a oração que ele repetia como um ato de fé era: “Deus deu, Deus tirou, bendito seja o nome do Senhor!”. Alguma vez você já viveu uma experiência semelhante na sua vida?

Quando Jesus faz essa oração na cruz, “Meu Deus! Meu Deus! Porque me abandonastes?”, em toda a oração que Jesus faz também no Getsêmani, no Horto das Oliveiras, qual é o núcleo mais profundo da Sua Paixão? O que é o que o faz mais sofrer? Não parece ser a dor física, mas a solidão radical que Ele vive naquele momento: o mais completo abandono. Esse é o núcleo mais central da Paixão que Jesus vive, que está em profunda contradição com a natureza do homem. Nós, homens e mulheres, não podemos subsistir sozinhos, mas precisamos do outro. Precisamos de uma vida comunitária, de uma família, e por isso a maior dor é a experiência do abandono, da solidão, que é a razão mais profunda das nossas angústias. Esse é um primeiro elemento de reflexão sobre o quê essa celebração da descida de Jesus à Mansão dos Mortos tem a nos dizer hoje, mas na verdade fui logo ao segundo ponto e me esqueci de dizer o primeiro, porque o primeiro fala uma coisa muito interessante. Então vamos voltar.

O artigo que fala da descida do Senhor à Mansão dos Mortos serve para nos lembrar de que a revelação de Deus na nossa vida não se compõe apenas de palavras de Deus, mas também do silêncio de Deus. Hoje estamos celebrando o Deus que se revela a nós no silêncio. Hoje Deus não nos fala nada. Hoje é um dia de silêncio. E Deus se revela não só através de palavras, mas também através do silêncio e do mistério. Deus não é somente a palavra que vai ao nosso encontro. Ele é também aquele fundo sigiloso e inacessível, incompreendido e incompreensível que foge à nossa percepção. Em outras palavras, eis o mistério da fé. A fé é um mistério. Santo Agostinho dizia: “E aí? Você acha que entendeu Deus? Pois se você acha que O entendeu, pode ter certeza de que não é Ele, porque Deus está muito além do nosso entendimento”. Deus é mistério.

Vocês sabem qual era a maior tentação do povo de Deus, aquilo que se chama de idolatria na bíblia? Por exemplo, quando tem aquela passagem que o povo de Deus faz um bezerro de ouro, onde Moisés sobe no monte para receber as Tábuas da Lei, os 10 Mandamentos, e aí o povo de Deus fica lá, e Moisés começa a demorar. Eles começam a sentir a ausência daquele que era para eles profeta, o representante de Deus. Parece que Deus não está ali com eles, porque o profeta não está ali com eles. Eles começam a sentir a ausência da palavra de Deus, e o que eles querem? Eles querem um Deus que eles podem enquadrar.

Não sei se isso é um consenso teológico, mas uma vez ouvi uma palestra de uma grande biblista que dizia que o grande pecado do povo quando fez o bezerro de ouro no deserto não é que eles estavam adorando outro deus. No bezerro de ouro eles estavam pensando que estavam adorando Deus Iahweh, só que o que eles estavam querendo fazer? Eles queriam um deus palpável, que eles podiam manipular, enquadrar, entender, um deus tangível. Eles não aceitaram caminhar no mistério, e isso muitas vezes é a grande tentação de todos nós quando estamos vivendo realidades de mistério na nossa vida. Por exemplo, quando morre uma pessoa cara, porque que o povo corre para o espiritismo? Porque não aguentam aquele mistério de não ver mais aquela pessoa e aí querem ver, não conseguem viver com a realidade do mistério. Porque que as pessoas vão procurar muitas vezes cartomantes, horóscopos? Porque não podem passar um dia sem ter alguma coisa para orientar suas vidas. Temos a palavra de Deus, mas a palavra de Deus não é assim um remédio para dor de cabeça que tomamos, um analgésico. A palavra de Deus muitas vezes nos dá uma indicação, uma direção, mas ela não é um manual de instruções detalhado, não! Ela nos dá uma direção na nossa vida.

É o que eu tenho vivido também, meus irmãos, minha família, o que muitos de vocês vivem também quando estamos diante de uma pessoa com uma grave enfermidade na nossa família. Às vezes temos a oportunidade de sermos assistidos por ótimos médicos, mas pensamos que vamos enlouquecer, porque às vezes dois médicos, três que acompanham o caso, onde cada um diz uma coisa, e percebemos que até mesmo o corpo humano diante de pessoas que são altamente especializadas é um mistério, quanto mais a nossa alma é um mistério! E o nosso corpo é algo que tocamos, que eles um dia estudaram sua anatomia, e mesmo assim é um mistério. Imagine a nossa alma! Quão grande mistério! Então precisamos aprender a mais frequentemente na nossa vida fazermos aquilo que Moisés fez. Quando se encontrou diante do mistério de Deus, ele tirou a sandália dos pés e adorou o mistério. Não quis entender, mas simplesmente se prostrou. Aquele gesto que fizemos ontem, os padres junto com o Bispo na Catedral: entramos em silêncio na igreja e nos prostramos. Têm momentos na nossa vida que a nossa oração, talvez a única coisa que vamos conseguir fazer é silenciar e se prostrar, adorando o mistério de Deus. Isso diz respeito de alguma maneira ou já disse na realidade da sua vida?

Agora vou continuar o segundo ponto. Falamos da solidão, do abandono, do silêncio. Vamos voltar ao ponto da solidão. O jovem teólogo Ratzinger, comentando esse artigo da fé, diz: “A solidão é a causa do medo, porque se baseia na fragilidade do nosso ser, destinado a existir”. O nosso ser é destinado a existir, mas muitas vezes se vê condenado há um dia em que vai chegar o momento da nossa morte, e diante do mistério da morte, que contemplamos hoje, sentimos medo, e aí ele vai dar alguns exemplos da realidade do medo. Primeiro exemplo: suponhamos que uma criança seja obrigada a atravessa uma floresta em noite escura. Vocês acham que essa criança vai ter medo? Ela tem medo. Mesmo que você diga que não tem nada ali, tentando convencer aquela criança para ela não temer, mas ela tem medo. Tem medo do desconhecido. No momento em que a criança se vê no meio da treva, sentindo a solidão de modo radical, surge o medo. O medo que é essencialmente humano, que não é temor de alguma coisa, porque aquela criança está tendo medo de quê? Ela não sabe do que está tendo medo, mas é o medo em si mesmo, o medo do desconhecido. É esse tipo de medo que temos também diante da morte.

Quando temos medo ou receio de alguma coisa concreta, por exemplo, um cachorro raivoso, é um medo muito concreto e que pode ser controlável, fazendo-se alguma coisa para se livrar daquele motivo de medo muito concreto, porque esse motivo de medo pode ser afastado. O medo de um cachorro bravo, por exemplo, elimina-se prendendo o cão. Agora, porém, nos deparamos com algo muito mais profundo: cercado da solidão última, o homem teme não uma coisa determinada, mas sente receio da solidão, experimenta o horror e a fragilidade do seu próprio ser, e esse é um medo impossível de ser vencido racionalmente.

Passamos agora para outro aspecto: como pode ser superado esse medo? Pois bem, diz o teólogo Ratzinger: “A criança perderá o medo no momento em que a sua mão sentir o aconchego de outra mão amiga, no momento em que soar outra voz falando com ela, ou seja, no instante em que experimentar a presença de uma pessoa bondosa. O que se encontra a sós, por exemplo, velando um defunto também sentirá desaparecer o medo se houver alguém em sua companhia, se sentir a proximidade de um tu, de uma outra pessoa. Essa superação do medo revela ao mesmo tempo a sua natureza que se trata do medo de estar só, nós como seres humanos temos medo de estar sós, temos medo da solidão radical, é próprio do temor de um ser que somente pode viver com os outros”. Presta atenção nessa frase: “O medo propriamente dito não pode ser vencido pela razão. Somente pode ser vencido por uma presença amorosa”.

Agora vamos olhar um pouco para esse ícone, que é o ícone que representa o mistério que celebramos hoje. Jesus que desce à Mansão dos Mortos para resgatar os justos. Nesse ícone temos na parte de baixo Adão e Eva, e vocês podem contemplar embaixo as trevas, esse preto, essa escuridão, e Jesus que com a Sua mão bondosa e amorosa pega na mão de Adão e o tira da escuridão, da noite, do abismo da Mansão dos Mortos.

E por isso meus irmãos nesse dia somos chamados a fazer essa experiência de em todas as escuridões, em todas as solidões, em todos os mistérios que vivemos na nossa vida, perceber essa mão amorosa de Deus, de Jesus que invade essa solidão, invade esse abandono, e que nos toma pelo pulso. E segurar pelo pulso é segurar uma pessoa que está totalmente fraca. Jesus nos toma e os arranca dessas realidades de medo.

E depois disso, depois de contemplarmos aquilo que Deus faz na nossa vida, pensarmos também que somos chamados a ser esses instrumentos de uma mão bondosa, de uma mão amorosa, de uma presença amiga, de uma voz amiga na vida dos nossos irmãos que se encontram no mistério da escuridão, da noite, da depressão, do abandono, da angústia, do pânico, de tantas realidades difíceis, irmãos que se encontram na prova da dor, da perda de um ente querido, da realidade de uma doença… Como é importante essa presença amiga!

Não sei se vocês já ouviram falar que quando nos vemos diante de um grande sofrimento ou uma tragédia, como o que aconteceu em Mariana, o Tsunami, o terrorismo, às vezes perguntamos: “O que é que Tu fizeste Senhor? O que fizeste pelo teu povo?”. E uma vez uma pessoa partilhou dizendo que quando fez essa pergunta para Deus, ela sentiu no coração a voz de Deus que dizia: “Eu fiz você. Você é a minha resposta. Seja a resposta daquilo que Eu sou capaz de fazer na vida dos seus irmãos que sofrem. Seja você essa mão de Deus, essa voz de Deus”. Nós somos a voz do Ressuscitado que passou pela cruz e que vai anunciar essa presença amorosa de Deus na vida dos nossos irmãos. Você já fez experiência dessa presença amorosa na sua vida em momentos de solidão, de angústia? Você já teve a oportunidade de ser instrumento de Deus para pessoas que viviam essa situação?

Quarto ponto: Vamos levar ainda mais longe a pergunta: na hipótese de existir uma solidão onde palavra alguma de outro consiga penetrar e transformar essa solidão? Se supusermos que existe uma solidão tão profunda que nenhuma outra pessoa a alcance, nós estaríamos diante da solidão e do horror total, e é isso que na teologia se chama inferno. O inferno designa uma solidão em que o amor já não penetra e que representa por isso mesmo o abandono propriamente dito da existência. Esse tipo de inferno só acontece quando há um fechamento voluntário da pessoa, quando a pessoa se fecha a tal ponto que ela não deixa ninguém entrar na sua vida.

Quinto ponto. De fato uma coisa é certa: existe uma noite em cujo erro, em cuja escuridão voz alguma ecoa. Há uma porta pela qual nós só podemos passar sozinhos, que é a porta da morte. Todo o medo do mundo finalmente nada mais é do que medo diante desta solidão. Daqui se compreende porque o Antigo Testamento usava uma só palavra para falar de inferno e de morte, a palavra Sheol, porque para o homem do Antigo Testamento eram duas coisas idênticas, porque ele considerava a morte simplesmente como uma solidão radical. A solidão a qual não pode chegar o amor é o inferno. É a solidão na qual o amor não pode chegar. Não porque o amor não queira, mas porque a pessoa se fecha completamente ao amor.

Sexto ponto. Onde voz alguma está em condições de nos alcançar, ali Jesus vai bater à porta. Com isso, o inferno foi vencido. Ou mais exatamente, a morte que antes era para o povo do Antigo Testamento o inferno, agora não é mais. Ambas as coisas, ou seja, morte e inferno, não são mais a mesma coisa, como se pensava no Antigo Testamento, porque no centro da morte a vida entrou, porque no meio da morte foi habitar o amor. E somente o excluir, o fechar-se voluntário é a única possibilidade de acontecer o inferno ou aquilo que a bíblia chama a segunda morte (Apocalipse 20, 14). Mas a morte não é mais um caminho para o seio da solidão. As portas do Sheol estão abertas, as portas da morte estão abertas, porque desde que na morte reside a vida, reside o amor. No seio da morte, no seio da solidão, no seio de toda angústia humana hoje, residem a vida e o amor.

Último ponto, para concluir. Nesse dia Cristo desce até as nossas mais profundas derrotas, as falências da nossa vida, quando nós estamos no chão, e nos lembremos de que quando estamos no fundo do poço, no fundo do abismo, o único local para o qual podemos olhar é para cima, para o alto. Cristo desce até o nosso mais profundo abismo, nos toma pela mão e nos faz entrar em Seu reino vitorioso. Nesse dia em que o silêncio da fé preenche a terra, outro silêncio a preenche de esperança. É o silêncio de Maria.Ela, a única sem pecado, é Aquela que nos acompanha da cruz à Ressurreição. Quando Deus parece estar ausente, lembremos de que Ele nos deixou Sua Mãe para nos levar a Ele.

Qual foi a última palavra de Jesus na cruz? Foi essa: “Meu Deus! Meu Deus! Porque me abandonastes?”, sim ou não? Nessa hora Jesus chama Deus de meu Deus. Jesus normalmente chamava Deus de Pai, mas vivendo a experiência do abandono Jesus diz: “Meu Deus! Meu Deus! Porque me abandonastes?”, mas depois Ele diz ainda outra coisa: “Pai, em Tuas mãos Eu entrego o Meu Espírito”. Há quem diga que depois que Jesus disse: “Meu Deus! Meu Deus! Porque me abandonastes?”, Ele olhou para baixo e viu Maria, e aí a visão da Mãe, da presença da Mãe, colocou de novo nos Seus lábios a palavra Pai, e aí Jesus reza: “Pai, em Tuas mãos Eu entrego o Meu Espírito”.

Nas grandes provas e nos momentos da nossa vida em que nos encontramos na cruz, quando nós nos sentimos abandonados até pelo próprio Deus como nosso Pai, somenteolhando para Maria nós teremos a força de dizer: “Pai, em Tuas mãos eu me abandono, em Tuas mãos eu entrego o meu espírito”.

Antes de vir para cá eu passei no hospital e minha mãe me fez prometer que eu iria pedir para todo mundo um momentinho de silêncio, e eu gostaria de pedir para vocês. Não considerem um egoísmo da minha parte não, mas nesse momento de oração eu queria que rezássemos, quero pedir pelo meu pai que está no hospital, na UTI, depois de uma operação no coração, de um processo ainda difícil. Queria pedir oração por ele e queria incluir nessa oração todos àqueles que em nosso meio estão sofrendo, todos aqueles que não estão aqui, mas os trazemos em nosso coração e que se encontram nesse abismo da solidão, da angústia, por algum motivo, alguma prova que estejam vivendo na sua vida. Num momento de silêncio breve, vamos colocar essas pessoas nas mãos de Jesus por Maria.

Concluamos cantando, e olhando para o ícone que representa a descida de Jesus à Mansão dos Mortos:

 

Sim, Eu vou

Onde ninguém vai, Eu vou

À Mansão da Morte

Eu sou teu salvador

não desisto de ti

 

Sim, Eu sei

o que ninguém sabe, Eu sei

e não te condeno, Eu vim

para te salvar, te devolver a paz

 

Segura a Minha mão

Aqui não é o teu lugar

Segura a minha mão

Eu vim te levantar

Seguro a tua mão

Eu te levo comigo

e onde Eu estiver

lá comigo estará.

 

 

Unidos a Virgem do Silêncio, a Mãe das Dores, Aquela que viveu esse dia na expectativa da Ressurreição do Seu Filho Jesus, e por isso se tornou para nós a Mãe da Esperança. Aquela que acompanhou todos os passos da Paixão de Jesus e acompanhou os apóstolos nesse dia de silêncio. A Mãe da Esperança, a Mãe das Dores, a Virgem do Silêncio, para que Ela gere em nós silêncio, santidade na dor, alegria na esperança, rezemos: Ave-Maria…

 

[1] Mateus 27, 40

 

Transcrição: Irlanda Aguiar


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