Acordo todos os dias e não preciso mais beijar o Tau antes de colocar no pescoço. Quando estou dormindo, em casa, é um dos únicos momentos em que consigo usá-lo sem correr o risco de levar nenhum tipo de contaminação comigo. Quando os “acessórios” foram proibidos dentro dos hospitais, me lembrei de quantas vezes briguei com quem usava o Tau alheio pra tirar foto, como se fosse um simples acessório, um troféu ou algo do tipo. Agora, para os homens, ele é sim um “acessório”, passível de contaminação.
“Eu não posso mais usar o meu Tau no dia-a-dia, no meu lugar de missão, e isso, de alguma forma, me fez tomar maior consciência da minha eleição. Todos os dias quando atendo alguém que, muitas vezes, não está doente, não tem sintomas de COVID, mas está apenas ansioso por ouvir palavras de conforto, de amor, eu entendo que a eleição me ultrapassa.”
Depois de passar aproximadamente 1 ano e 8 meses sem exercer a medicina, quando estou diante de uma pessoa, eu tento me colocar no lugar dela. Como a gente se sente mal quando vai no médico e ele nem olha pra gente, não é? Eu tento colocar todo meu cansaço de lado, as minhas lutas internas e externas, a pressão psicológica de estar lutando contra algo novo, assustador, que a medicina ainda nem descobriu como combater efetivamente. Eu tento não ser indiferente, não ser apenas alguém que “prescreve medicação”. Eu tento ser apenas um ser humano tentando ajudar o outro. Na maioria das vezes, eu consigo. Porque tudo é graça!
Eu consigo porque rezo de manhã cedo, de madrugada, antes do dia começar. Consigo porque peço perdão a Deus, Ele leva em conta a minha fraqueza por todas as vezes em que não fui capaz de ajudá-Lo. Consigo porque peço que Ele me dê sabedoria para usar o conhecimento que adquiri e estudar aquilo que ainda preciso aprender. Porque entrego nas mãos Dele todos os frutos do meu trabalho…
Mas as vezes eu não consigo!
O cansaço parece me vencer. Eu me lembro que sou humana e por baixo daquela máscara, avental, luva, óculos, de todo aquele “EPI”, que não existe uma “heroína”, existe uma missionária muito cansada. Eu peço perdão a Deus e suplico por todos aqueles que não fui capaz de ajudar na humanidade do meu cansaço.Pela primeira vez na minha curta carreira na medicina, estou vendo os médicos chorarem. Chorarem por perder amigos, colegas de trabalho, por se verem as vezes tão inúteis diante da forma avassaladora como o vírus atinge. Chorarem de desespero, de incapacidade. Como é que a gente estuda 6, 9, 12, 30 anos e não consegue vencer um vírus? A gente aprende na faculdade que eles são “seres acelulares”, que coisa mais insignificante, né?
Não é insignificante quando é alguém que você ama. Não é insignificante quando rouba a dignidade de um filho de Deus, que não pode nem se despedir da família. Nestes dias, eu vi muitas famílias desesperadas. Chorando, gritando a dor insuportável de ter perdido pro “ser acelular”. Gritando por Deus, gritando ajuda, uma prece que talvez nunca tivessem feito, mas que na dor saía de forma espontânea…
Mas, diante de todo esse desespero, como eu posso prosseguir? Como não me desesperar?
Eu lembro das palavras de Santa Gianna: “tocar o paciente é como tocar o próprio Cristo”. Eu preciso me lembrar que Cristo ressuscitou. Eu me lembro que Ele venceu a morte quando estou em uma situação sem recursos, com paciente grave, correndo risco de morte e faço uma prece silenciosa, que sei que só Ele pode ouvir “Senhor, por favor, não deixa ele ir ainda…”.
A vida eterna nunca foi tão próxima. A morte nunca foi tão significativa. Nunca fiz tantas orações sinceras. Nunca agradeci com tanta verdade pela vida. Eu sei que isso tudo vai passar. Eu já perdi pessoas queridas para o vírus. Mas continuo acreditando que vai passar! Porque eu conheço uma verdade que infelizmente muitos dos meus colegas médicos ainda não conhecem: depois da cruz, sempre vem a ressurreição. Eu vivo por essa verdade!
Chego em casa, o cansaço domina, mas tenho que descontaminar tudo, lavar roupa, limpar tudo que trouxe da rua. Quando finalmente está tudo limpo, beijo meu Tau, aquele que eu deixei guardado o dia todo, coloco sobre o pescoço e posso, com alívio, com amor, não sem dor, mas com gratidão, dizer:
Obrigada, Senhor, por me teres escolhido! Obrigada por me teres escolhido para ser médica neste tempo de pandemia! Obrigada por me teres escolhido para estar na linha de frente! Obrigada por me teres escolhido para dar a minha vida pelo outro desta forma, neste tempo! Obrigada por me deixar ser instrumento do teu consolo para aqueles que sofrem!Tudo vai passar, mas a Tua eleição é irrevogável e nada, nada, nada irá nos separar do Teu Amor. E isso me basta. Obrigada.
Bianca Alho | Missionária na Comunidade de Aliança Shalom
Missão de Macapá