Dono do morro
Cristian passou a mão em seu fuzil. Ainda não podia acreditar que o dono do morro tinha lhe confiado aquela função: vigiar a entrada do beco das flores, para avisar quando a polícia chegasse.
Todas as tardes, subia as escadas para a laje da dona Joana. A velha senhora alugava o ponto por seiscentos reais por mês. Valia a pena. A visão da entrada da favela era privilegiada. Se os policiais ou membros de outras facções tentassem invadir aquele território, podiam ser vistos quase imediatamente. Só era necessário manter a atenção.
Dono do mundo
Desde que tinha sido promovido de aviãozinho para olheiro, andava armado. Ele gostava da sensação de medo que os outros sentiam quando olhavam para ele andando pelos becos do morro com o seu AK105 em punho. Com aquela arma, era o dono do mundo: imprimia respeito, atraía as garotas, mandava nas crianças, não levava desaforo para casa.
Aprendera com o padrasto a vida no tráfico. O pai abandonou a família quando Cristian tinha seis meses de vida. A mãe precisou se virar para sobreviver, e acabou se envolvendo com um traficante. Muito cedo, o garoto teve que largar a escola para ajudar o padrasto a vender cocaína para os jovens ricos que frequentavam a praia em frente ao morro.
Quando não conseguia fazer todas as entregas, levava uma surra. Uma vez, quase morreu de tanto apanhar, porque foi surpreendido por dois policiais que o flagraram bem na hora da primeira venda do dia. Ele largou a droga no calçadão e conseguiu fugir. O prejuízo de quinhentos reais até hoje doía em suas memórias, tanto quanto a surra de cabo de vassoura que levou do padrasto.
Agora tinha dezesseis anos. Já não apanhava mais, pois seu padrasto tinha morrido há três anos, durante um tiroteio com membros de outra facção. Foi aí que Cristian começou a trabalhar para o dono da boca na esquina da sua casa, ganhando o próprio dinheiro.
O rapaz estava meio perdido nessas lembranças, quando, de repente, foi trazido de volta à realidade pelos gritos do seu companheiro de vigilância.
– Acorda, mané! Os caras da Facção da Maré tão chegando!
Era tarde demais. Cerca de quarenta homens armados já estavam invadindo o morro. Vinham para vingar a morte de um dos integrantes da quadrilha, ocorrida na noite anterior.
Cristian disparou uma rajada de tiros para o alto. Era o sinal para avisar os demais companheiros sobre a invasão. Quanto a ele, estava encurralado naquela laje. Três dos invasores subiram as escadas da casa de dona Joana. Quando chegaram ao alto, foram recebidos por Cristian e o outro olheiro com disparos de metralhadora. Foi uma tragédia. Três dos cinco traficantes morreram na troca de tiros. Cristian escapara com o braço ferido e viu que um dos seus opositores também estava vivo, mas tinha levado um tiro na perna.
Um encontro inesperado
Ele correu para se esconder, entrando na primeira porta que encontrou aberta. Estava perdendo muito sangue.
– Que é isso, garoto? – gritou um homem que estava na casa.
– Cala a boca. Me ajuda! Traz alguma coisa pra parar esse sangue – ordenou Cristian, apontando o fuzil para o homem.
– Calma. Eu vou te ajudar. Me chamo Timóteo, sou um padre missionário. Não quero o teu mal.
Essas foram as últimas palavras que Cristian escutou antes de desmaiar, por causa da perda de sangue. Quando acordou, já era noite. O tiroteio no morro havia cessado. Ele estava deitado em uma cama macia, com lençóis que cheiravam a amaciante. Seu fuzil jazia encostado na parede, perto da cabeceira.
– Quem é você? – falou ele, agarrando a sua arma.
– Já disse, rapaz. Sou o padre Timóteo. Você não lembra como chegou aqui? Estava ferido e pediu ajuda.
– Não fez mais do que a sua obrigação. Vou ter que ficar por aqui por uns dias, até essa confusão passar. Matei dois integrantes da Maré. Eles vão voltar pra me pegar.
– Pode ficar. Sinta-se em casa.
– Não precisa dizer isso. O morro todo é do chefe do tráfico. Trabalho pra ele, então, tudo é meu também.
A convivência com o padre durou cerca de uma semana. Com o passar dos dias, o jeito paternal do sacerdote acabou conquistando o rapaz, que passou a chamá-lo de Padrão, uma mistura de padre com patrão, que ele mesmo inventou.
Padre Timóteo começou a perguntar sobre sua vida. Ele se sentiu à vontade para falar do seu passado com o novo amigo. Cristian também perguntava tudo a respeito do sacerdote, concluindo que tratava-se de uma boa pessoa, por ter abandonado a vida confortável que tinha em Curitiba, para ser missionário no Morro do Bem-te-vi, um dos mais violentos do Rio de Janeiro. Depois disso, ele voltou para casa.
O Arrependimento
Certa noite, passadas duas semanas, Cristian resolveu visitar o padre, que lhe perguntou se ele queria se confessar. O garoto disse que não sabia como, porque só tinha sido batizado pela avó, que era muito católica, mas que a mãe não ligava para as coisas de Deus, assim, não conhecia nada da fé.
Desse modo, o padre passou horas conversando com Cristian, falando a respeito da vinda de Jesus ao mundo e também falando sobre as riquezas do céu. Ele falava com tanta alegria, que era impossível não acreditar. Por fim, disse que o nome do garoto significava exatamente “ser cristão” e pediu para rezar por ele. Cristian aceitou.
A conversa durou a noite inteira. Cristian se sentiu arrependido por ter matado aqueles dois rapazes e por tudo o que tinha feito de errado na vida. O padre, então, ensinou-lhe a se confessar, quando os primeiros raios de sol começaram a invadir a janela da casinha simples onde se encontravam. O rapaz sentiu-se com o coração tão leve, que, entre lágrimas, deu um grande abraço no sacerdote, agradecendo por aquela experiência.
Dono do céu
Ao sair da casa, Cristian sorria como há muito tempo não fazia. Quando dobrou a esquina, foi surpreendido por dois integrantes da Facção da Maré. Levou vários tiros no peito. Só teve tempo de pensar sobre uma coisa: na alegria de, a partir de agora, não mais ser apenas o dono do morro ou deste mundo, mas ser dono do céu.
No velório do amigo, padre Timóteo rezou a oração de São João da Cruz, alegrando-se pela oportunidade que Cristian tivera de morrer em estado de graça:
“Senhor Deus, amado meu! Se ainda Te recordas dos meus pecados, para não fazeres o que ando pedindo, faz neles, Deus meu, a Tua vontade, pois é o que eu mais quero, e exerce neles a Tua bondade e misericórdia e serás neles conhecido; porque, se, enfim, há de ser graça e misericórdia o que em Teu filho Te peço, toma os meus parcos haveres pois os queres, e dá-me este bem, pois que Tu também o queres. Quem se poderá libertar dos modos e termos baixos se não o levantas Tu a Ti em pureza de amor, Deus meu? Como se elevará a Ti o homem gerado e criado em baixezas, se Tu o não levantares, Senhor, com a mão com que o fizeste? Não me tirarás, Deus meu, o que uma vez me deste em Teu único Filho Jesus Cristo, em quem me deste tudo quanto quero; por isso folgarei pois não tardarás, se eu confiar. Com que dilações esperas, se desde já podes amar a Deus em teu coração? O céu é meu e minha a terra; minhas são as gentes, os justos são meus e meus os pecadores, os anjos são meus e a Mãe de Deus, e todas as coisas são minhas; e o próprio Deus é meu e para mim, porque Cristo é meu e todo para mim. Que pedes pois e buscas, alma minha? Tudo isto é teu e tudo para ti”.