A cidade era a de Uppsala, estava em pleno inverno nórdico, na Suécia, e eu, com o pouco cabelo que me restava, lutava para não ficar parecido com o Bozo, aquele personagem americano da década de 40, de Alan Livingston. Algo mais parecido com o Tin-tin seria mais do que aceitável.
Enquanto na minha cidade no Brasil basta aparecer no salão de beleza do bairro e esperar na fila para ser atendido, em Uppsala é preciso ligar e agendar, descrevendo o serviço que se deseja e o cabeleireiro que irá atender.
Como era minha primeira vez, escolhi aleatoriamente o funcionário e estava no salão 3 minutos antes do horário marcado. Poucos segundos antes das 16:00, uma bela jovem me chama para sentar no lugar onde cortaria meus cabelos.
Ela era de estatura mediana, cabelos curtos, pintados com várias cores; tinha rosa, verde, azul e em uma pequena parte permanecia sua cor original. Descendo para o rosto, havia alguns piercings na sobrancelha, nariz e lábios e uma série de bolinhas brilhantes em fila na sua orelha esquerda. No pescoço, uma pequena tatuagem de borboleta e nos seus braços várias outras tatuagens que fiz questão de não olhar muito para não parecer invasivo. Sua bata escondia roupas bastante estilosas. Ela era uma das mulheres mais bonitas e alternativas que havia conhecido na vida. Tinha um corpo pequeno e delicado, o que fazia jus a sua voz.
- Um rapaz com a mesma cruz que você está usando acabou de vir aqui. Ele bem disse que um amigo estaria vindo logo em seguida – disse ela.
- Ah, sim! Sou o William muito prazer. Essa cruz se chama Tau e é um sinal de consagração a Deus. Somos missionários!
- Uau, vamos começar, então?
Depois de poucas explicações sobre o que ela deveria fazer no meu cabelo, começamos a conversar sobre nossa estadia no país, oportunidades de estudo e emprego, amizades, país de origem e cultura. Não sem demora, o assunto “religião” surgiu, e ela parecia bastante entusiasmada para tirar todas as dúvidas que tinha comigo. Essa foi a hora em que, por fora, fiz uma cara de maduro, sorrindo simpaticamente, e, por dentro, orava em línguas mentalmente pedindo socorro a Deus, aos anjos, aos santos, que iluminassem minha memória e colocassem as palavras acertadas em minha boca. A conversa durou pouco mais de uma hora e falamos sobre diversos temas:
- Por que nos referimos a Deus como um ser “masculino”, usando pronomes masculinos, o chamando de “Senhor”, “Pai”, “Deus dos exércitos”?
- Não seria correto afirmar que tratá-lo dessa forma só reforçaria uma relação machista, oprimindo ainda mais as mulheres?
- Por que as mulheres não podem ser sacerdotes?
- Por que a Igreja é “contra” os homossexuais?
- Tem problema não ir para a Igreja e relacionar-me com um ser superior enquanto que busco em vida ser uma pessoa melhor a cada dia e fazer o bem?
- Por que Deus permite que haja tantos males? Que tipo de amor é esse?
Não obstante a todas essas dúvidas que essa bela jovem me fazia, duas coisas me chamaram atenção:
A primeira é que em dado momento, ela me disse o seguinte:
- Desculpe-me se estou importunando você com tantos questionamentos. Se você quiser eu paro agora mesmo e termino o meu serviço em silêncio, mas é que eu acho que alguma força te trouxe aqui hoje para que nós conversássemos.
- Mas não há problema algum! Se você quer saber – eu disse – foi exatamente para isso que eu vim aqui! Veja que praticamente nem cabelos tenho mais. O que importa mesmo é exatamente essa conversa que estamos tendo agora. – Rimos muito (inclusive alguns clientes do lado, que não tinham nada a ver com a conversa, riram também discretamente, atentos a tudo o que estávamos falando).
A segunda coisa que me chamou atenção nessa conversa foi o nome da cabeleireira, por isso guardei essa informação até aqui. Seu nome era Rachel. Exatamente: “era”. Civilmente ela ainda estava registrada como Rachel, mas ela me disse que nos últimos anos percebeu como sua vida estava bagunçada, como ela não tinha paz, como ela era rebelde e desafiadora perante família, amigos e sociedade. Agora, mais madura, percebia que não valia a pena se comportar como outrora e por isso fazia todos aqueles questionamentos para mim honestamente, como alguém que deseja conhecer a verdade, mas que se encontra confusa porque, de fato, não conseguia encontrar a resposta para tantas dúvidas. Depois de toda essa crise que viveu e de toda transformação que contemplou, socialmente, passou a se apresentar a todos como Aurora. Justificou sua escolha com a própria definição da palavra:
- Período que antecede o nascer do Sol
- Luminosidade que se observa no horizonte durante esse período
- Fig. Os primeiro anos da vida; a infância, a juventude:
Exatamente isso, Aurora estava feliz com a mudança de vida e percebia que uma nova luz a iluminava. Era uma luz pequena ainda, pequenos raios de uma vida nova. Ela estava certa de que minha presença ali a ajudaria, de alguma forma, a tornar esses raios de sol mais fortes. Ela queria conhecer o sol, queria sentir o calor que emana de seu fogo.
O leitor, tendo lido até aqui, certamente espera que eu conte quais foram minhas respostas aos questionamentos daquela bela jovem, mas não contarei. Posso dizer que tudo o disse estava carregado de amor e expressava tudo o que eu vivia com Deus, acima de quaisquer pronomes pessoais, possessivos, demonstrativos, interrogativos, relativos e indefinidos, meu amigo.
No final, não pude abraçá-la, claro, muito menos impor minhas mãos sobre ela para rezar, mas trocamos contato e me comprometi que daquele dia em diante nunca iria esquecer dela e que, em certa medida, ela representava uma nova Aurora de Deus em minha vida. Te convido também a rezar por essa minha nova filha espiritual: Aurora.