Deus, ao nos criar, colocou em nosso coração um certo desejo natural de autopreservação que nos permite, em suma, agir prudentemente para conservar a nossa vida diante de um perigo iminente, não arriscando-a levianamente, afinal, a vida é o primeiro dom que recebemos do Criador, e deve ser respeitada e conservada de modo justo e equilibrado.
Apenas tomando consciência do valor intrínseco que cada um de nós possuímos, por nossa dignidade de imagem e semelhança divinas, é que podemos viver o ensinamento máximo do Evangelho, que nos diz para amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.
Entretanto, este desejo de autopreservação muitas vezes encontra-se maculado pelo pecado e, por isso, apresenta-se em forma de um desequilíbrio doentio, que tende a transformar-se em pusilanimidade e fechamento ao outro. Assim, o próprio bem-estar e conforto tornam-se valores intocáveis, que não poderão ser perdidos nunca, seja qual for a necessidade que venha a surgir. Em resumo, a autopreservação desordenada transforma-se em egoísmo e perversão, palavra que, em sua raiz, per versus, quer dizer “voltado para si mesmo”.
Como antídoto para a cura deste mal que deseja corromper a nossa alma e afastá-la de sua plena realização, que é a santidade, não há outra via mais eficaz, a não ser mergulharmos em outro coração, este, com “c” maiúsculo: “O Sagrado Coração de Jesus, transpassado pelos nossos pecados e para nossa salvação, (…) considerado sinal e símbolo por excelência (…) daquele amor com que o divino Redentor ama sem cessar o eterno Pai e todos os homens” (CIC, §478).
A Solenidade que a Igreja celebra na próxima semana, a saber, o Sagrado Coração de Jesus, é uma das três solenidades do Tempo Comum, festejada na segunda sexta-feira após Corpus Christi, cuja devoção foi fomentada através das revelações de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque, no século XVII, embora os primeiros escritos mencionando esta veneração ao lado aberto de Jesus tenham origem por volta dos séculos XI e XII, nos mosteiros beneditinos e cistercienses, por meio da devoção às Santas Chagas de Cristo, como nos apontou São Bernardo de Claraval: “O mistério do coração abre-se através das feridas do corpo; abre-se o grande mistério da piedade, abrem-se as entranhas de misericórdia do nosso Deus”. Esta devoção, por fim, propagou-se com mais rapidez a partir de meados do século XIX, quando o Papa Pio X estendeu esta festa para toda a liturgia da Igreja, mas sua primeira celebração litúrgica foi realizada na França, em 20 de outubro de 1672.
Dentre as inúmeras graças colhidas desta magnífica devoção, ao contemplarmos o Sagrado Coração de Jesus, fonte inesgotável de amor, temos a nossa vida transformada e podemos ser curados de nossos egoísmos e perversões. Como nos ensina o Papa emérito Bento XVI no livro Guardare al Crocifisso: “A autopreservação, a manutenção de si é o papel do coração. O coração transpassado de Jesus realmente transformou tal definição. Este coração não é auto conservação, mas é autodoação. Este salva o mundo abrindo-se. Tal transformação operada pelo coração aberto é o conteúdo do mistério pascal. O coração salva, sim, mas salva entregando-se. Neste coração de Jesus é, assim, colocado diante de nós o centro do Cristianismo. Nele é dita toda a novidade realmente revolucionária que acontece no novo pacto. Este coração invoca o nosso coração, nos convida a sair da inútil tentativa da auto conservação e encontrar no amar juntos, no dom de nós mesmos a Ele, a plenitude do amor que é eternidade e que somente assim conserva o mundo”.
Como vimos, o Sagrado Coração de Jesus nos ensina a nova dinâmica evangélica, trazida ao mundo por Jesus, que é a doação e a abertura ao outro como verdadeira fonte de preservação da vida: “Todo o que procurar salvar a sua vida irá perdê-la; mas todo o que a perder irá encontrá-la” (Lc 17,33). Tal enunciado supera o conceito natural de autopreservação para elevá-lo ao patamar celeste: o valor verdadeiro da vida é encontrado ao fazê-la um dom a Deus e aos outros.
A vida cristã é repleta de oportunidades para encarnar este ensinamento de autodoação, à semelhança da oferta total de Jesus Cristo, e a Solenidade que celebramos hoje é o dia propício para pedirmos esta renovada graça ao Senhor. Sejamos, portanto, imitadores deste Coração misericordioso e sempre aberto aos outros, e ajudemos a difundir esta belíssima devoção.
Jesus manso e humilde de coração, fazei do nosso coração semelhante ao vosso!
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