Fora de dúvida, uma nota inseparável de Francisco de Assis é a alegria, que forma com ele um todo. Se a pobreza fica perfeitamente enquadrada pelo adjetivo “franciscana”, diga-se outro tanto da alegria. Quando adjetivada de franciscana, ela forma um todo e evoca a alegria na sua pureza mais lídima e na sua expressão mais concreta.
A convicção profunda de ser amado por Deus, a clareza de que tudo quanto fora criado dentro da beleza o fora para ele, a fraternização que conseguira estabelecer com todos os seres da natureza fazia-o cantar de alegria. Com freqüência, era visto empunhando um galho que arranjava à moda de violino e à moda de arco manejava um outro galho, como um violinista embevecido a produzir cascatas de notas que se evolavam pelo azul do céu. Como aprendera o francês de sua mãe e, com a língua, as canções da Provence, quando o júbilo o inundava, punha-se a cantar em francês os louvores de Deus.
Celano exprimiu muito bem este arrebatamento: “A suavíssima melodia de seu coração exprimia-se externamente em palavras que ele cantava em francês, e o que Deus lhe murmurava furtivamente ao ouvido extravasava em alegres cânticos franceses. Às vezes, pegava um pedaço de pau no chão, como vi com meus olhos, punha-o sobre o braço esquerdo, segurava na direita um arco de arame, passava-o no pedaço de pau como se fosse um violino e, fazendo os gestos correspondentes, cantava ao Senhor em francês. Freqüentemente, esta festa toda acabava em lágrimas, e o júbilo se dissolvia na compaixão para com a paixão de Cristo. Então, começava a suspirar sem parar, dobrava os gemidos, e logo, esquecido do que tinha nas mãos, era arrebatado ao céu” (2 Cel 127).
Se de um lado tinha a inspiração e a sensibilidade de poeta, do outro, sua comunhão com a natureza fazia-o o homem pacificado. Como conseqüência desta pacificação estava possuído da alegria. Não de uma alegria artificialmente alimentada ou freneticamente buscada, feita de bens e de coisas materiais, mas uma alegria, em verdade, gozosa, vale dizer, espiritual, íntima, profunda, contagiante. Não lhe agradava em absoluto encontrar religiosos com ares taciturnos, com frontes enrugadas e seriedade artificial. Imediatamente os enviava a um confessor, pois, a seu ver, uma só razão justificava a tristeza: o afastamento de Deus por causa do pecado.
Segundo um seu biógrafo contemporâneo: Francisco esforçava-se por conservar a alegria espiritual interior e exterior. Não lançava mão apenas de seu gênio alegre e amável e de seu trato cavalheiresco e agradável, mas empregava um constante esforço, através da reflexão e da contemplação, para alicerçar esta alegria. Por isso, os acontecimentos, ainda que de caráter sério, não lhe anuviavam o semblante, não lhe maculavam a palavra, não lhe entristeciam o interior. Sabia que, além de tudo e depois de tudo, há uma solução.
Custa-nos compreender como a alegria possa ser compatível com sofrimentos físicos ou penas interiores. Francisco soube fazer a fusão. Na sua célebre parábola sobre a Perfeita Alegria, mostra-nos que esta convivência é perfeitamente possível, uma vez que a alegria não é introduzida no homem através de mecanismos ou de posses ou de satisfações periféricas, ela é uma realidade que habita o âmago do homem, mas que deve ser trazida à tona, mediante uma concepção de vida com a qual são encarados os acontecimentos terrenos e históricos.
Esta alegria tornou-se-lhe como que a companheira de sua vida. Mesmo, prostrado ao solo de sua pobre cela, momentos antes de morrer, quando todo homem estremece, ele canta, pois o canto é a expressão mais concreta e exuberante da alegria. Como diz Tagore: “Os verdadeiros poetas, os videntes, tratam de expressar o universo em termos de música”. Os frades, seus companheiros, imbuídos ainda de preconceitos, bem ocidentais, aliás, em relação à morte, advertem-no de que cantar naqueles momentos poderia causar escândalo aos fiéis, que o tinham em conta de santo. Mas ele lhes mostra que o cristão não tem momentos para não cantar. A vida, em todas as suas explicitações, merece ser cantada, mui especialmente quando se está para transpor os umbrais da eternidade, região onde cessam todos os elementos dolorosos e geradores de sofrimentos ou perturbadores da harmonia.
O respeito com que se aproxima das criaturas, a ausência total de egoísmo e de interesse comercial, faz com que elas lhe respondam de forma alegre: estabelece um dueto com a cigarra, fala e faz-se entender pelos passarinhos, as cotovias lhe vêm ao encontro e o acompanham no momento derradeiro, o falcão o acorda e condói-se de seus cansaços; sente a dor que machuca o coração dos cordeiros levados ao mercado ou ao matadouro e experimenta o regozijo da liberdade conquistada; sofre com a angústia que silencia as rolas aprisionadas e condenadas ao comércio dos homens e vibra com seu vôo liberto, experimentando toda a paixão do libertado.
Não permite que lembranças do passado se instalem tenebrosamente em seu interior, fazendo com que os acontecimentos amargurem, outra vez, o presente. Ele que um dia se despojou de todas suas vestes, diante do pai, despiu-se também de todas as lembranças amargas, fazendo com que a luminosidade da esperança lhe enchesse todas as dobras do coração. Assim, sua música não era desafinada por algo que já se foi. Igualmente, não temia o futuro, não vivia na defensiva do amanhã, porque a pobreza que abraçou lhe permite ser livre, independente até do pão para a próxima refeição. Portanto, não é uma alegria isolada, desencarnada, um pedaço dele mesmo ou uma faceta de seu temperamento, mas é uma conseqüência de uma forma de conceber a vida e de senti-la numa dependência amorosa de Deus. É a conquista da serenidade. Esta palavra tão rica que evoca a imensidão azul do mar, sem ondas ou ameaças, deslizante, pura, transparente, convidativa e inspiradora. Ele era a alegria.
Quando o sofrimento chega, porque dele não ficou livre, nem o desejou ficar, pelo contrário, pediu-o, este sofrimento encontrará um solo propício e não será um vulcão a derramar lavas de revolta, mas um ser amigo, com um lugar no quadro das amizades, um outro elemento desencadeador de alegria. Também ele encontra lugar, não como antípoda da alegria, mas como fraterno companheiro de jornada, não impedindo que a beleza continuasse a ser beleza, em toda sua majestosa realidade.
A alegria marcará a partir de Francisco, e de fato ainda marca, a produção literária franciscana em todos os gêneros. Giotto, o pintor que embelezou a Basílica, em Assis, onde repousam os restos de São Francisco, introduziu a natureza em seus quadros e na própria arte pictórica. Procurou romper a seriedade e sisudez – quase tristes – bizantinas, para introduzir a alegria da paisagem colorida e de formas animadas. Dele se alimentarão os grandes expoentes do Renascimento, que o tomarão como ponto de partida. Daí afirmarem alguns que São Francisco, com suas idéias, foi uni dos próceres do movimento renascentista, com o que concordamos. O Cântico das Criaturas, onde a alegria borbulha em cada verso, será como que a inspiração constante e cantante dos teólogos e filósofos franciscanos, que através dela revestirão de otimismo e simpatia as verdades mais duras e mais sérias do cristianismo. Sem ser filósofo e sem ser teólogo, marcou profundamente a Teologia e a Filosofia, de maneira a podermos adjetivar estas ciências de “Franciscanas”, quando praticadas na cosmovisão de Francisco.
Se pobre é um adjetivo que caracteriza e descreve Francisco de Assis, alegre tem o mesmo peso e o mesmo brilho e sua ausência tornaria incompleta qualquer definição deste Santo, que nos legou uma “espiritualidade sempre jovem”, evocando jovem como sinônimo de alegria.
Deste modo, a ALEGRIA aparece, com todo o direito, como outra das notas características do FRANCISCANISMO.
Do livro “São Francisco vida e ideal”, de Frei Hugo Baggio, Editora Vozes, 1991.