Formação

A evolução e a Trindade

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O discurso sobre criacionismo e evolução acontece habitualmente emdiálogo com a tese oposta, de natureza materialista e ateia, e emchave, por isso, necessariamente apologética. Em uma reflexão feitaentre crentes e para crentes, como a atual, não podemos deter-nos nesteestágio. Deter-nos aqui significaria ficar prisioneiros de uma visão«deísta», e não ainda trinitária e, portanto, não especificamentecristã, do problema.

Quem abriu o discurso sobre a evolução a uma dimensão trinitária foiPierre Teilhard de Chardin. A contribuição deste estudioso à discussãosobre a evolução consistiu essencialmente em ter introduzido nela apessoa de Cristo, de ter feito dela um problema também cristológico.

Seu ponto de partida bíblico é a afirmação de Paulo segundo a qual«tudo foi criado por ele e para ele» (Col 1, 16). Cristo aparece nestavisão como o Ponto Ômega, ou seja, como sentido e ponto de chegadafinal da evolução cósmica e humana. Pode-se discutir o modo e osargumentos com os que o estudioso jesuíta chega a esta conclusão, masnão a própria conclusão. O motivo explica bem Maurice Blondel em umanota escrita em defesa do pensamento de Teilhard de Chardin: «Diantedos horizontes aumentados da ciência da natureza e da humanidade, nãose pode, sem trair o catolicismo, permanecer em explicações medíocres eem modos de ver limitados que fazem do Cristo um acidente histórico,que o isolam do Cosmos como um episódio postiço e que parecem fazerdele um intruso ou um perdido na hostil imensidão do Universo».

O que falta ainda, para uma visão completamente trinitária do problema,é uma consideração sobre o papel do Espírito Santo na criação e naevolução do cosmos. Exige-o o princípio básico da teologia trinitáriasegundo o qual as obras ad extra de Deus são comuns às três pessoas daTrindade, cada uma das quais participa dela com sua característicaprópria.

O texto paulino que estamos meditando nos permite precisamentepreencher esta lacuna. A referência às dores de parto da criação se fazno contexto do discurso de Paulo sobre as diversas atuações do EspíritoSanto. Ele vê uma continuidade entre o gemido da criação e o do criadorque está posto abertamente em relação com o Espírito: «Esta (a criação)não está sozinha, mas também nós, que possuímos as primícias doEspírito, gememos interiormente». O Espírito Santo é a força misteriosaque impulsiona a criação para seu cumprimento. Falando da evolução daordem social, o Concílio Vaticano II afirma que «o espírito de Deusque, com admirável providência, dirige o curso dos tempos e renova aface da terra, está presente nesta evolução».

Ele que é «o princípio da criação das coisas», é também o princípiode sua evolução no tempo. Isso, de fato, não é outra coisa senão acriação que continua. No discurso dirigido, em 31 de outubro de 2008,aos participantes do simpósio sobre a evolução, promovido pela AcademiaPontifícia das Ciências, o Santo Padre Bento XVI sublinhava esteconceito: «Afirmar que o fundamento do cosmos e de seusdesenvolvimentos é a sabedoria providente do Criador não é dizer que acriação tem a ver só com o início da história do mundo e da vida. Issoimplica, mais, que o Criador funda estes desenvolvimentos e ossustenta, fixa-os e os mantém constantemente».

O que o Espírito oferece de específico e de «pessoal» na criação? Issodepende, como sempre, das relações internas da Trindade. O EspíritoSanto não está na origem, mas por assim dizer, no término da criação,como não está na origem, mas no final do processo trinitário. Nacriação – escreve São Basílio –, o Pai é a causa principal, aquele doqual são todas as coisas; o Filho é a causa eficiente, aquele por meiodo qual todas as coisas foram feitas; o Espírito Santo é a causaaperfeiçoadora».

A ação criadora do Espírito está na origem, portanto, da perfeição docriado; ele, diríamos, não é tanto aquele que faz o mundo passar donada ao ser, mas aquele que faz passar do ser informe ao ser formado eperfeito. Em outras palavras, o Espírito Santo é aquele que faz passaro criado do caos ao cosmos, que faz dele algo belo, ordenado, limpo: um«mundo», precisamente, segundo o significado original desta palavra.Santo Ambrósio observa:

«Quando o Espírito começou a repousar sobre ele, a criação não tinhaainda beleza alguma. Ao contrário, quando a criação recebeu a atuaçãodo Espírito, obteve todo este esplendor de beleza que a fazresplandecer como ‘mundo’.»

Não é que a ação criadora do Pai tenha sido «caótica» e necessitada decorreção, mas é o próprio Pai, assinala São Basílio no texto citado,que quer fazer existir tudo por meio do Filho, e quer levar à perfeiçãoas coisas por meio do Espírito.

«No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra era caos, confusãoe escuridão por cima do abismo, e um vento de Deus soprava por sobre aságuas» (Gn 1, 1-2). A própria Bíblia, como se vê, alude ao passo de umestado informe e caótico do universo, a um estado em caminho deprogressiva formação e diferenciação das criaturas e menciona oEspírito de Deus como o princípio deste passo ou evolução. Estaapresenta esta passagem como repentina e imediata, a ciência revelouque se estendeu em um arco de milhões de anos e que está ainda em ato.Mas isso não deveria criar problemas, uma vez conhecida a finalidade eo gênero literário do relato bíblico.

Fundando-se no sentido de expressões análogas presentes nos poemascosmogônicos babilônicos, hoje se tende a dar à expressão «espírito deDeus» (ruach elohim) do Gêneses 1, 2 o sentido puramente natural devento impetuoso, vendo nela um elemento do caos primordial, igual aoabismo e as trevas, ligando-o portanto ao que precede e não ao quesegue, no relato da criação. Mas a imagem do «sopro de Deus» voltano capítulo sucessivo do Gêneses (Deus «soprou em seu nariz um alentode vida e o homem se converteu em um ser vivo») com um sentidoteológico e não certamente natural.

Excluir, do texto, de toda referência, ainda que embrionária, arealidade divina do Espírito, atribuindo a atividade criadoraunicamente à palavra de Deus, significa ler o texto só à luz do que oprecede e não à luz do que o segue na Bíblia, à luz das influências quesofreu e não também da influência que exerceu, contrariamente ao quesugere a tendência mais recente na hermenêutica bíblica. (O modo maisseguro para estabelecer a natureza de uma semente desconhecida não étalvez ver que tipo de planta nasce dela?)

Avançando na revelação, encontramos referências cada vez maisexplícitas a uma atividade criadora do sopro de Deus, em estreitaconexão com aquela de sua palavra. «Pela palavra (dabar) do Senhor sefizeram os céus, pelo sopro (ruach) de sua boca seus exércitos» (Sal33, 6; cf. também Is 11.4: «Sua palavra será uma vara contra oviolento, com o sopro de sua boca matará o malvado»). Espírito ou sopronão indica certamente, nestes textos, o vento natural. A este texto seremete outro salmo quando diz: «Envias teu espírito e são criados, erenovas a face da terra» (Sal 104, 30). Seja qual for a interpretaçãoque se quer dar, por isso, ao Gênesis 1, 2, é certo que a continuaçãoda Bíblia atribui ao Espírito de Deus um papel ativo na criação.

Esta linha de desenvolvimento se torna claríssima no Novo Testamento,que descreve a intervenção do Espírito Santo na nova criação,servindo-se precisamente das imagens do sopro e do vento que se leem apropósito da origem do mundo (Jo 20, 22 com Gên 2, 7). A ideia da ruachcriadora não pode ter surgido do nada. Não se pode, em um mesmocomentário ou edição da Bíblia, traduzir Gênesis 1, 2 como «um vento deDeus sobre as águas» e depois remeter-se a este mesmo texto paraexplicar a pomba no Batismo de Jesus!.

Não é, portanto, incorreto continuar referindo-se a Gn 1, 2 e aosdemais testemunhos posteriores, para encontrar neles um fundamentobíblico ao papel criador do Espírito Santo, como faziam os Padres. «Seadotas esta explicação – dizia São Basílio, seguido nisso por Lutero –tirarás grande proveito». E é verdade: ver no «Espírito de Deus»que repousava sobre as águas uma primeira referência embrionária à açãocriadora do Espírito abre a compreensão de tantas passagens sucessivasda Bíblia, das quais de outra forma sua origem não teria explicação.


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