Vivemos em tempos difíceis, somos provados diariamente em nossa humanidade. Pessoas surtam diante de nossos olhos, parecendo dominadas por enfermidades que se radicaram em suas almas. A ansiedade e a inquietude estão presentes por toda a parte. Quem está livre? A nosso favor, temos recursos poderosos para lidar com tudo isso, podemos encontrar uma força narrativa capaz de conduzir o rumo de nossa história, tornando-nos o diretor e o ator da própria vida. Há uma força impressionante na religião e no poder da Divindade fortemente chancelados pela filosofia. Dispomos de recursos para aliviarmos o peso das neuroses, psicoses e tentações.
O que podemos dizer para nós mesmos? É possível estabelecer uma dialética conosco mesmos quando se apresentam pensamentos vãos, desordenados e estranhos? É viável enfrentar tentações vigorosas usando a dialética platônica ensinada em seus diálogos, buscando encontrar razoabilidade e equilíbrio em nosso pensar? Olhe para o seu íntimo e considere a força do ensinamento agostiniano: Deus habita no mais íntimo de nós mesmos, encontrando-se na camada mais profunda do nosso ser. Que tal entregarmos o comando das rédeas da nossa vida a este “cocheiro interior”, este guia, este mestre que, a partir do íntimo, pode governar as potências do nosso ser: inteligência, memória, vontade, afetos até as mais superficiais e primárias faculdades?
Só para citar alguns dos mais conhecidos: deter-me-ei em dois clássicos, um neoplatônico e um cristão. As suas teorias trazem consequências impressionantes. Certamente, homens como nós, que enfrentaram problemas pessoais, desafios de relacionamentos, dilemas e crises e que têm muito a nos ajudar.
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Platão, filósofo ateniense do século III A.C., fala que é preciso caminhar da opinião obtida pelo contato com as coisas sensíveis e chegar até a ciência elevada na direção do Sumo Bem, para se chegar ao inteligível (A linha ou reta platônica). Mesmo a teoria pura das formas, das ideias direcionam para uma forma perfeita de cada ente presente no hiperurânio (“lugar além do céu”), especulando sobre um “molde perfeito” de todos os entes.
Aristóteles, nascido em Estagira, aluno e contemporâneo de Platão, postula a ideia do motor imóvel, a causa incausada. Mesmo ainda não tendo “sido apresentado” a um Deus criador, por não ter recebido a revelação divina, descreveu alguém do qual se originaram todas as coisas, um ser perfeito, inteligente e eficiente. Ainda descreveu belissimamente a “causa final”, segundo a qual todos os seres tenderiam para o seu estágio mais perfeito, pleno e excelente. Aqui esse conceito se coaduna totalmente com o que o Cristianismo chama de providência: As disposições pelas quais Deus, com amor e sabedoria, conduz suas criaturas para seu fim último (aqui é a ideia de perfeição, ou santidade, como queiram), ou seja, a melhor versão de si mesmo.
Após a filosofia antiga, surge Plotino, no século terceiro, D.C., desenvolvendo uma filosofia religiosa mesmo também sem ter recebido a revelação divina que se acolhe por meio da fé. Este último, presente no período chamado “Antiguidade Tardia”, antes dos escolásticos, foi contemporâneo dos Padres da Igreja. Ele atesta, em um bloco de seus escritos, o desejo de encontrar o Uno, de elevar-se até Ele, perfeição absoluta presente no interior e no cosmos.
Quanto a mim, tenho aprendido a lidar com o que é desequilibrado, desproporcional e equivocado em meu interior. As falsas caricaturas da religião também são enfrentadas diariamente: escrúpulo, atrição, moralismo e mesmo alguns vícios, projeções de nossas fraquezas que são modelos equivocados do que seja “re-ligare”. Não questiono a religião, questiono a mim mesmo. Outra ideia interessante na filosofia é de privação. Analiso as minhas tentações, reconhecendo que elas não são parte de mim, não têm consistência em si, não têm substância, são fraturas ou ausências. O que é privação? Algo que deveria estar presente, mas por algum motivo não está. Um homem cego de um olho está privado da plenitude da faculdade de enxergar. Então, volto-me ao meu interior: não deveria pensar assim, mas penso; não deveria agir assim, mas ajo; não deveria perseguir avidamente estes bens inferiores, mas o faço; não deveria me desesperar pela carência destes ou daqueles bens temporais, mas, às vezes, caio. A concupiscência é uma privação; o pecado, uma negação da bondade divina. Na filosofia, negação é aquilo que não deveria estar presente. O homem não pode se queixar de não ter asas, pois ele jamais deveria desejar tê-las, isso é uma loucura.
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Não sou contemplativo, nem bem sei rezar direito. Luto a cada dia por rejeitar e confrontar o que se passa no meu íntimo junto Àquele que conhece todas as coisas. Quando muito, consigo meditar um pouco, o suficiente, para me reorientar, para firmar-me na Direção do Sumo Bem. Encerro com este belo poema:
“Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova… Tarde Te amei! Trinta anos estive longe de Deus. Mas, durante esse tempo, algo se movia dentro do meu coração… Eu era inquieto, alguém que buscava a felicidade, buscava algo que não achava. Mas Tu Te compadeceste de mim e tudo mudou, porque Tu me deixaste conhecer-Te. Entrei no meu íntimo sob a Tua Guia e consegui, porque Tu Te fizeste meu auxílio.” (Santo Agostinho)
Delcy Pereira Carvalho Filho, consagrado na Comunidade de Aliança Shalom
Aluno do curso de Filosofia da Academia Atlântico