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A Moralidade no Antigo Testamento parte III

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A Moralidade no Antigo Testamento ( II ) – EB Final

O modo de tratar as cidades cananéias seria outro, pois, estando localizadas na terra mesma que Israel devia habitar, a coexistência de cananeus pagãos com os israelitas fiéis oferecia grave perigo de contaminação pagã.  Não era, portanto, permitido aos judeus abster-se do herém ao vencer os cananeus, como inculca Dt 7, 2-5; 20, 15s.  Isto vem confirmar a observação de que em Israel o preceito do herém era ditado principalmente pelo ideal religioso; era em vista da fidelidade de homens rudes ao verdadeiro Deus que ele fora sancionado para o povo hebreu.

Indumentária de penitência.

Manifestações de tal mentalidade encontram-se não somente entre os semitas, mas também entre os gregos antigos: assim a totalidade dos troianos teve de pagar pelo malefício de Paris; Creso expiou o morticínio cometido por Gigés, seu antepassado em quinto grau; Eurípedes declarou que os deuses fazem redundar contra os descendentes os passos falsos dados pelos antenatos".

A mesma lei da solidariedade, a mentalidade do clã, é vigente ainda hoje em tribos orientais nômades.

Cf. E. Sellin, "Das Subjekt der altisraelitischen Religion", em Neue kirchliche Zeitschrift, 4 (1893), 444; 3. De Fraine, "Individu et societé dans la religion de I’Ancien Testament", em Bíblica, 33 (1952), 451s.

"Derramar o sangue de um membro da família é derramar o sangue do grupo, é atingir o corpo orgânico.  Isto vale até em caso de suicídio e de aborto; mas vale principalmente em caso de morticínio… Tudo é comum: a injúria, o prejuízo, o dever e até o sangue; ainda em nossos tempos, em caso de homicídio, os árabes dizem : Nosso sangue foi derramado". J. De Fraine, art. cit., 456.

"Cada grupo entre os semitas constitui um só vivente, como uma única massa animada, formada de carne e osso, da qual parte nenhuma pode ser truncada sem que todos os membros sofram com isto. "R. Smith, Religion of the Semitics, 274, citado por A. Lods, La croyance à la vie future et le culte des morts dans I’antiquité israélite, II (Paris, 1906), 274.

De resto, o decálogo mesmo foi formulado em termos adaptados a essa mentalidade coletivista.  Eis como se encerra o primeiro mandamento:

"Sou o Senhor vosso Deus … castigo a iniquidade dos pais nos filhos, nos netos e bisnetos daqueles que me odeiam, mas faço misericórdia até a milésima geração àqueles que me amam e observam meus mandamentos". (Êx. 20, 5s).

É o que claramente transparece dos seguintes textos:

"À sombra das tuas asas agasalha-me contra os pecadores que me fazem violência.

Contra os inimigos que, sedentos, me rodeiam" (Sl 16, 8s).

"Sejam confundidos e corem de vergonha os que  procuram arrebatar-me a vida! (…).

Exultem e alegrem-se em Ti todos os que Te procuram!"  (Sl 39, 15,17)

"Ouvir-me-à e os humilhará Deus, que tem um trono eterno.

Pois não há neles conversão, e não temem a Deus" (Sl 54,19s)

"Não entrarão em si, porventura, os que cometem iniqüidade.

Os que devoram o meu povo assim como engolem pão,

Os que não invocam a Deus?"  (Sl 53,5)

Muito significativas são também as palavras que Labã proferiu quando se despediu de seu genro Jacó, a quem dera as duas filhas por esposas:

"Que o Senhor nos observe, a mim e a ti, quando nos tivermos separado!  Se maltratares minhas filhas e tomares outras mulheres ao lado de minhas filhas, (…) Deus será testemunha entre mim e ti". (Gn 32, 49s).

Observa-se que, em Ez 23, 1-49 e Jr 3, 6-13, a imagem que deve indicar a realidade espiritual é a de um matrimônio bígamo: o esposo tem duas esposas irmãs.  A exceção se explica pelo fato de que o hagiógrafo queria aludir não ao povo de Deus como tal, mas distintamente às duas partes em que o reino de Salomão se havia cindido; a figura da esposa única tinha então de ceder à das duas irmãs e esposadas ao mesmo verão, para que a metáfora correspondesse à realidade (cf. pág. 270, nº 14).

Ao matrimônio bígamo assim descrito não se pode atribuir valor de modelo, de mais a mais que a Lei mosaica explicitamente condenava a união de um varão com duas irmãs (cf. Lv 18, 18).

Homens retos e homens indignos de Israel foram polígamos.  Assim: Abraão tinha Sara por esposa principal (Gn 12,5); ao lado dela, havia Agar, a escrava (Gn 16, 1), e concubinas (Gn 25,6).

Jacó esposou Lia e Raquel, cada uma das quais o instigou a unir-se com uma escrava (Gn 29, 25-29; 30, 2,9).

Esaú teve três mulheres (Gn 36, 1s).

Elcaná, o pai de Samuel, teve duas esposas (1Sm 1,2).

O rei Davi tinha um harém numeroso (1Sm 18, 27; 25,39-43; 2Sm 3,2-5; 5,13;11,27).

Famoso foi o harém de Salomão (1Rs 11, 1-13).

Sabe-se que o número de mulheres que um proprietário oriental possuía era tido como indício de sua riqueza, de seu prestígio.

Por isto, os reis da Babilônia tinham nos respectivos haréns mulheres de condições variadas.  O código legislativo do rei Hamurapi prevê, por exemplo, ao lado da esposa principal, a existência legal de uma concubina ou de uma escrava que a esposa apresentava ao marido (art. 144-146).

O mesmo se dava no Egito.  O Faraó possuía numerosas mulheres, filhas de altos funcionários, ou estrangeiras, filhas de régulos submetidos ao Egito (as quais, por vezes, iam ter à corte na qualidade de reféns). Essas mulheres em maioria ficavam sendo concubinas; a algumas era dada a dignidade de "esposas régias"; uma só era feita "grande esposa" ou rainha.

Assim Raquel, estéril, fez com que Jacó se unisse a Balá, sua escrava (Gn 30,3s); da mesma forma procedeu Lia, apresentando a serva Zelfa a Jacó (Gn 30,9s).  Dizia Raquel: "Que Balá dê à luz sobre os meus joelhos, e por ela terei também ou uma família!"  (Gn 30,3). E, quando Balá gerou Dá, exclamou Raquel: "Deus me fez justiça; ouviu a minha voz e me deu um filho". (Gn 30,6).

Não somente em Israel, mas também na antiga Caldéia, a mulher rica recebia de sua família, como dote de casamento, uma escrava, que ficaria à sua disposição para o resto da vida, e que não seria concubina.  A patroa podia ceder o seu lugar à escrava nas relações com o marido, tornando-se então a prole da escrava propriedade da patroa.  O Código de Hamurapi proibia ao marido tomar uma concubina, caso a escrava fosse fecunda: "Se um homem esposar uma mulher e se esta der ao marido uma escrava que procrie filhos, caso esse homens queira tomar uma concubina, não se lhe dará autorização para isto e ele não tomará concubina". (Art. 144).

A impureza legal estava baseada em fenômenos fisiológicos (às vezes, doenças), sem implicar necessariamente culpa no indivíduo por ela afetado.  Distingue-se bem da "impureza moral", que o sujeito contrai por uma vontade inclinada ao mal, culpada.

La Sainte Bible, II (Paris, 1946), 102.

Analogamente se exprime H. Lesêtre, "Mariage", em Dictionnaire de la Bible, VI (Paris, 1928), 763;

"A Lei mosaica se adaptava aos costumes da época autorizando o divórcio e deixando em vigor a poligamia … Estas concessões eram contrabalançadas pelos impedimentos matrimoniais de parentesco e pelas regras severas de pureza legal, que conservavam a idéia e a prática do matrimônio em certo nível moral e contrastavam com a licenciosidade tolerada por outros povos".  

Em 2Pd 2, 7s Lote é dito "o justo".

29ª  Em grego, aitia = causa: lógos = discurso. Etiologia = discurso que revela a   causa.

Note-se como por três vezes é inculcado que as filhas de Lote conceberam de seu pai (vv. 32, 34,36).  Esta insistência se explica bem pela intenção de dar uma interpretação pejorativa aos dois nomes.

Os hebreus abominavam o ato incestuoso que atribuíam às filhas de Lote (cf. Dt 27, 20,23; Lv 18, 6-8).

La méthode historique, 207. Com Lagrange concordam Clamer, La Sainte Bible, I (Paris, 1953), 297; J. Chaine, Le livre de la Genèse (Paris, 1949), 253.

Sabe-se que ainda no séc. V alguns autores cristãos julgavam lícita a mentira formal, desde que fosse proferida com a finalidade de promover o bem (cf. Cassiano, Collat, 17,17).  Os teólogos católicos, porém, em breve repudiaram, e ainda hoje repudiam, mesmo tal espécie de mentira.

"Segurar o calcanhar" é bem o sinal de "suplantar".

O processo utilizado por Jacó para obter cabras malhadas foi o seguinte: Quando os animais estavam para entrar em cópula, o Patriarca colocava diante de seus olhos varas de salgueiro, amendoeira, plátano, nas quais fizera incisões a fim de as tornar raladas ou listradas de branco; a visão desses ramos devia influenciar a formação do embrião, produzindo prole malhada (cf. Gn 30, 37-39).

O artifício estava muito em voga entre os antigos; julgavam, como ainda hoje freqüentemente pensa o nosso povo, que certos objetos avistados durante a concepção ou a gestação acarretavam notas próprias na prole.  Vejam-se os testemunhos de Opiano. De venatione, I, 327s; Plínio, Hist. Nat., VII, 10; Hipócrates, segundo Sto. Agostinho. Quaest, in Heptat., I, 93; Isidoro de Sevilha, Etymologiarum, liber XII, I, 58-60. Nos tempos de S. Jerônimo (séc. V), dizia-se que os espanhóis por meio de tais artifícios sabiam variegar a cor de seus cavalos. Cf. S. Jerônimo, "Liber hebraicarum quaestionum" in Genesin, ed. Migne lat. 23, 985.

A ciência genética moderna, possuidora de mais exatos conhecimentos, talvez negue a possibilidade da influência natural de tais fatores sobre o processo generativo.

Como quer que seja, o texto sagrado dá a entender que o artifício de Jacó se tornou eficiente por especial intervenção de Deus; esta terá sido, em última análise, a causa do êxito do processo que por si mesmo talvez fosse vão.  O expediente usado por Jacó pode ter sido mera ocasião para que Deus o beneficiasse.

Note-se a ênfase com que o astuto varão, depois de obter o sucesso, inculca ter sido especialmente auxiliado por Deus.

"Vejo no rosto de vosso pai (Labã) que ele não me é favorável como antes, mas o Deus de meu pai esteve comigo (…) Vosso pai burlou-se de mim e dez vezes que ele dizia: "A prole malhada será tua paga", todos os animais davam à luz filhotes malhados; sempre que ele dizia: "A prole raiada será tua paga", os animais geravam filhotes raiados; Deus tirou a vosso pai o gado e o deu a mim (31, 5, 7-9).

No v. 16 respondem Raquel e Lia: "Sim; toda a riqueza que Deus tirou de nosso pai pertence a nós e a nossos filhos".

Estes versículos indicam a causa profunda de um fenômeno que vulgarmente se atribuía ao artifício utilizado por Jacó.

Eis o oportuno comentário de G. Ricciotti, Histoire d’Israel, I, 148s.;

"Se se observam atentamente os traços com os quais a Bíblia nos apresenta o homem conhecido antes e depois da luta com Deus, verifica-se impressionante mudança.  Jacó era o realizador inquieto e complicado; Israel será o triunfador enérgico e benévolo".

A propósito se pode citar a observação do E. Joly, Aux sources bíblique (Paris, 1950), 41:

"A luta de Jacó com o anjo não será a imagem de toda a nossa vida espiritual? Lutamos contra Deus, resistimo-Lhe; ora é no momento em que somos vencidos por Deus e Lhe pedimos nos abençoe, que na verdade nos tornamos vencedores.  Pode-se dizer também que Deus se quer deixar vencer por nossa oração".

O mesmo autor cita o seguinte trecho e Paul Claudel, que narra a sua conversão:

"Cette résistance a daré quatre ans. J’ose dire que je fis une belle défense et que la lutte fut loyale et complète (…) Le combat spirituel est aussi brutal que la lutte d’hommes (…) Je fus définitivement forcé, réduit."

"Deus, que ainda não derramara a graça reservada para os tempos do Messias, pôde servir-se de Aod como de um salvador, da mesma forma como ser serviu de Eglon como de um flagelo, independentemente do valor moral dos seus atos".  Lagrange, Le livre des Juges  (Paris, 1903), 61.

Os antigos julgaram ser cada doença causada no homem por um mau espírito; admitiam também a influência dos demônios no mistério da comunicação da vida ou da geração da prole (nem gregos e romanos eram alheios a essas crenças).  Pensavam igualmente que certos animais são sagrados, relacionados com a Divindade ou com demônios, ou são a sede de potências "sobrenaturais" (são tabus, conforme o termo técnico oriundo da Polinésia).  Falavam, outrossim, do animal totem (termo derivado da língua dos índios algonquins do México setentrional), ancestral com o qual tal família ou tribo se julgava aparentada e ao qual consequentemente dedicavam profunda veneração.

Hoje em dia, reconhecem os estudiosos que a crença nos tabus e nos totens não era nem tão generalizada, nem tão uniforme, nem tão religiosa, nem tão primitiva, como no fim do século passado asseveraram os historiadores.

Na Revelação cristã, a terceira proposição do esquema seria assim formulada:

E PARA QUE SEJA SANTO PRATIQUE O AMOR. POIS DEUS É AMOR. (cf. 1Jo 4, 7-11).

Os interditos (de pureza ritual) não careciam de valor religioso, pois arraigavam nos corações a consciência da transcendência de Deus.  Percebemos a elevada noção que tinham Davi e seus contemporâneos, do domínio absoluto de Javé. Tais leis, porém, cuja razão de ser já fora esquecida, facilmente davam ocasião a que os israelitas considerassem a Deus como senhor caprichoso e duro.  Os interditos, cujo significado era desconhecido, tornavam-se usos sociais, meramente leigos, destituídos de eficácia religiosa … Por isto foram sendo, aos poucos, transformados e eliminados mediante o aperfeiçoamento das noções religiosas do povo".  A. George, "Faustes contre Yasweh dans les livres de Samuel", em Revue biblique, 53 (1946), 169.

Aos estrangeiros feitos servos de israelitas não se reconheciam as regalias enunciadas neste parágrafo (cf. Lv 25, 44-46).


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