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A parábola do filho pródigo

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Por S. Agostinho de Hipona

Tradução: Prof. Luiz Jean Lauand

Fonte: www.hottopos.com

  "Disse Jesus: Um homem tinha doisfilhos. O mais moço disse a seu pai: Meu pai, dá-me a parte dopatrimônio que me toca. O pai então repartiu entre eles os haveres.Poucos dias depois ajuntando tudo o que lhe pertencia, partiu o filhomais moço para um país muito distante, e lá dissipou sua herançavivendo dissolutamente. Depois de ter esbanjado tudo, sobreveio àquelaregião uma grande fome: e ele começou a passar penúria. Foi pôr-se aserviço de um dos senhores daquela região, que o mandou para os seuscampos guardar porcos. Desejava ele fartar-se das vagens que os porcoscomiam, mas ninguém lhas dava. Entrando então em si e refletiu:"Quantos empregados há na casa de meu pai, que têm pão em abundância, eeu, aqui, a morrer de fome! Levantar-me-ei e irei a meu pai, edir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou dignode ser chamado teu filho; trata-me como a um dos teus empregados".Levantou-se, pois, e foi ter com seu pai. Estava ainda longe, quandoseu pai o viu, e, movido pela misericórdia, correu-lhe ao encontro,lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou. O filho lhe disse então: "Meu pai,pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teufilho". Mas o pai disse aos servos: "Trazei-me depressa a melhor(primeira) veste e vesti-lha, e ponde-lhe um anel no dedo e calçado nospés. Trazei também o bezerro cevado e matai-o; comamos e festejemos.Este meu filho estava morto, e reviveu; tinha-se perdido e foi achado".E começaram a festa… (Lc 15,11-32)

 

I

Não é necessário determo-nosem assunto de que já tratamos; mas se não é o caso de nos demorarmos,sim o é de rememorarmos. Vossa prudência ainda lembra que no domingopassado comentei a parábola, lida no Evangelho de hoje, a do filhopródigo, comentário que no entanto não pude concluir. Deus Nosso Senhorquis, porém, que, passada aquela tribulação, possamos hoje continuar afalar.

Sinto-me obrigado a pagar a dívida dosermão, porque as dívidas de amor sempre devem ser pagas. Assista-meDeus para que meus poucos recursos possam satisfazer a vossaexpectativa.

II

O homem que tem dois filhos é Deus que tem dois povos: o filho mais velho é o povo judeu; o menor, os gentios.

O patrimônio que este recebeu do Paié a inteligência, a mente, a memória, o engenho e tudo o que Deus nosdeu para que O conhecêssemos e Lhe déssemos culto. Tendo recebido estepatrimônio, o filho menor "partiu para um país muito distante".Distância significa: o esquecimento de seu Criador. "Dissipou suaherança vivendo dissolutamente": gastando e não ajuntando; malbaratandotudo o que tinha e não adquirindo o que não tinha, isto é, consumindotoda sua capacidade em luxúria, em ídolos, em todo tipo de desejosperversos, aos que a Verdade denominou meretrizes.

III

Não é de admirar que essaorgia acabasse em fome. "Sobreveio àquela região uma grande fome"; fomenão de pão visível mas da verdade invisível. E, por causa da fome, "foipôr-se a serviço de um dos senhores daquela região": entenda-se odiabo, o senhor dos demônios, sob cujo poder caem todos os curiosos,pois a curiositas é o pestilento abandono da verdade.

À margem de Deus, por entregar-se aseus próprios recursos, foi submetido à servidão e lhe tocou o ofíciode apascentar porcos, o que significa a servidão mais extrema e imundaque costuma alegrar os demônios: não foi por acaso que o Senhor, quandoexpulsou a legião dos demônios, permitiu que entrassem na piara deporcos.

Alimentava-se então das vagens deporcos sem poder saciar-se. Vagens são as vistosas doutrinas do mundo:servem para ostentar mas não para sustentar; alimento digno paraporcos, mas não para homens: próprias para dar aos demônios deleitação,mas não aos fiéis justificação.

IV

Até que, por fim, tomouconsciência do lugar em que tinha caído; do quanto tinha perdido; Quemtinha ofendido e a quem se tinha submetido. Reparai no que diz oEvangelho: "Entrando em si…"; primeiramente, voltou-se para si e sóassim pôde voltar para o pai. Dizia talvez: "O meu coração me abandonou(isto é: saí de mim mesmo)" (Sl 40,13); daí que fosse necessário,antes, voltar para si mesmo e assim perceber que se encontrava longe dopai. É o que diz a Escritura quando increpa a alguns, dizendo: "Voltai,pecadores, ao coração! (isto é: voltai, pecadores, a vós mesmos!)" (Is46,8). Voltando para si mesmo, encontrou-se miserável: "Encontrei, dizele, a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor" (Sl 116,3-4)."Quantos empregados, diz ele, há na casa de meu pai, que têm pão emabundância, e eu, aqui, a morrer de fome!" (…)

V

Levantou-se e voltou. Ele,caído por terra depois de contínuos tropeços. O pai o vê ao longe esai-lhe ao encontro. É dele que fala o Salmo: "Entendeste meuspensamentos de longe" (Sl 139,2). Que pensamentos? Aqueles que o filhotinha em seu interior: "Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei:Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de serchamado teu filho; trata-me como a um dos teus empregados". Ele aindanada tinha dito, só pensava em dizer. O pai, porém, ouvia como se ofilho já o estivesse dizendo.

Por vezes, em meio a uma tribulaçãoou tentação, alguém pensa em orar, e, no próprio ato de pensar o queirá dizer a Deus na oração, considera que é filho e que, como tal, temdireito a reivindicar a misericórdia do Pai. E diz de si para si:"Direi a meu Deus isto e aquilo; não temo que, em lhe dizendo isto, echorando, não seja eu atendido pelo meu Deus". Geralmente, Deus já oestá atendendo quando ele diz estas coisas; e mesmo antes, quando ascogita, pois mesmo o pensamento não está oculto ao olhar de Deus.Quando o homem delibera orar, já lá está Aquele que lá estará quandoele começar a oração.

E assim se diz em outro Salmo: "Eudisse: confessarei minha iniqüidade ao Senhor" (Sl 32,5). Vede como setrata ainda de algo interior a ele, de um mero projeto e, contudo,acrescenta imediatamente: "E tu já perdoaste a impiedade de meucoração" (Sl 32,5). Quão próxima está a misericórdia de Deus daqueleque se confessa! Não, Deus não está longe de quem tem um coraçãocontrito, como está escrito: "Deus está próximo dos que trituram seucoração" (Sl 34,19). E neste triturar seu coração no país da penúria,retornava ao coração para moê-lo. Soberbo, abandonara seu coração;irado com santa indignação, a ele retorna.

Indignou-se contra si mesmo, contra omal que há em si, para se emendar; retornou para merecer o bem do pai.Indignou-se conforme a sentença: "Irai-vos para não pecar" (Sl 4,5).Pois quem está arrependido fica irado e, por estar indignado consigomesmo, se pune.

Daí surgem aquelas práticas própriasdo penitente que verdadeiramente se arrepende, verdadeiramente se dói,sente ira contra si mesmo. Certamente, é indício dessa ira o bater nopeito: o que a mão faz externamente, a consciência o faz internamente:golpeia-se nos pensamentos, ou melhor, produz a morte em si mesmo. E,matando-se, oferece a Deus o "sacrifício de um espírito atribulado.Deus não despreza um coração contrito e humilhado" (Sl 51,19). E,assim, raspando, quebrando, humilhando seu coração, leva-o à morte.

VI

Embora tivesse ainda somente adisposição de falar ao pai, cogitando em seu interior: "Levantar-me-eie irei a meu pai, e dir-lhe-ei…", o pai, que de longe já conheceessas cogitações, foi ao seu encontro.

Que significa "ir ao encontro" senãoantecipar-se pela misericórdia? Pois, "estava ainda longe, quando seupai o viu, e, movido pela misericórdia, correu-lhe ao encontro". Porque foi movido pela misericórdia? Porque o filho tinha confessado suamiséria. "E correndo-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço", istoé, pôs o braço sobre o pescoço dele.

Ora, o braço do Pai é o Filho:deu-lhe, portanto, Cristo para carregar: uma carga que não pesa, masalivia. "Meu jugo é suave, diz Cristo, e meu fardo é leve" (Mt 11,30).Ele se apoiava sobre o que estava de pé e, por apoiar-se, impedia-o detornar a cair. Tão leve é o fardo de Cristo que não só não pesa, mas,pelo contrário, até ergue.

Não que o fardo de Cristo seja umacarga dessas que se chamam leves (não há carga, por mais leve que seja,que não tenha algum peso). Pode-se carregar um fardo pesado, um fardoleve ou, ainda, não carregar fardo algum. Anda oprimido quem carregafardo pesado; menos oprimido quem leva uma carga leve (embora tambémande oprimido); com os ombros totalmente desembaraçados, quem nãocarrega fardo algum. Não é dessa ordem o fardo de Cristo, mas um fardotal que convém carregá-lo para sentir-se aliviado; se nosdesvencilharmos dele, mais carregados nos sentiremos.

E que esta nossa afirmação, irmãos,não vos pareça absurda! Talvez encontremos alguma comparação que vostorne plausível, até em termos de nossa experiência sensível, o queestou dizendo. Um caso, também ele, espantoso e totalmente incrível.

É o seguinte: considerai as aves.Toda ave carrega o peso de suas asas: não reparastes como, quandodescem ao chão, recolhem as asas para poder descansar e como que aslevam nos costados? Julgais que estão oprimidas pelo peso das asas?Tirai-lhe este peso e cairão: quanto menos pesarem as asas, menos podea ave voar.

Alguém que, a título de misericórdia,as privasse deste peso, não estaria sendo misericordioso. A verdadeiramisericórdia está em poupar-lhes esta privação e, se já perderam asasas, em dar-lhes alimento para que readquiram asas pesadas e possamarrancar-se da terra e voar. É bem este o peso que desejava o salmista:"Quem me dará asas como as da pomba para que eu voe e encontre meurepouso?" (Sl 55,7)

Assim, o peso do braço do pai sobre opescoço do filho não o carregou, mas o aliviou; foi-lhe honroso e nãooneroso. Como é, pois, o homem capaz de carregar consigo a Deus se nãoé porque o está carregando, o Deus que ele carrega?

VII

E o pai ordena que o vistamcom a primeira veste, aquela que Adão perdera ao pecar. Tendo recebidoo filho em paz, tendo-o beijado, ordena que lhe dêem uma veste: aesperança de imortalidade, conferida no batismo. Ordena que lhe dêem umanel, penhor do Espírito Santo; calçado para os pés, como preparaçãopara o anúncio do Evangelho da paz, para que sejam formosos os pés dosque anunciam a boa nova.

Estas coisas Deus faz através de seusservos, isto é, os ministros da Igreja. Acaso eles podem, por sipróprios, dar veste, anel e calçados? Não, apenas cumprem seuministério, desempenham seu ofício; quem dá é Aquele de cujo depósito ede cujo tesouro são extraídos estes dons.

Mandou também matar o bezerro cevado,isto é, que fosse admitido à mesa em que o alimento é Cristo morto.Mata-se o bezerro para todo aquele que, de longe, vem para a Igreja, naqual se prega a morte de Cristo e no Seu corpo o que vem é admitido.Mata-se o bezerro cevado porque o que se tinha perdido foi encontrado.





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