Com esse título o Santo Padre, Bento XVI, ofereceu-nos por ocasião do Dia Mundial da Paz, uma significativa reflexão sobre a Paz e suas exigências no presente momento de nossa história. Ele começa por formular os votos de paz, privilegiando os que sofrem: “envio-os (os votos), de modo particular, a quantos se encontram na tribulação e no sofrimento, a quem vive ameaçado pela violência e pela construção das armas ou, espezinhado na sua dignidade, aguarda o próprio resgate humano e social. Envio-os às crianças que, com a sua inocência, enriquecem a humanidade de bondade e de esperança e, com o seu sofrimento, a todos nos animam a sermos obreiros de justiça e de paz. Pensando precisamente nas crianças, especialmente naquelas cujo futuro está comprometido pela exploração e pela maldade de adultos sem escrúpulos, quis que, por ocasião do Dia Mundial da Paz, a atenção se concentrasse sobre o tema: a pessoa humana, coração da paz”. A afirmação central que fundamenta sua reflexão é esta: “a paz é simultaneamente dom e missão”. É que o indivíduo humano, por ser pessoa, imagem e semelhança de Deus, está por natureza destinado a assumir-se como tal e a colocar-se em relação harmoniosa com os outros: “por ter sido criado à imagem de Deus, o indivíduo humano possui a dignidade de pessoa; não é só alguma coisa, mas alguém, capaz de se conhecer, de se possuir e de livremente se dar e de entrar em comunhão com outras pessoas”. Mais ainda: “ao mesmo tempo, ele é chamado, pela graça, a uma aliança com o seu Criador, a dar-lhe uma resposta de fé e amor que mais ninguém pode dar em seu lugar”. Tudo isso é dom de Deus. O ser humano pode e deve viver em harmonia consigo, com os outros e com Deus. Como ele se realiza no tempo, a paz é uma conquista permanente, que se concretiza no processo jamais acabado de se construir e de construir a própria sociedade de forma harmoniosa. A paz é dom a ser assumido como tarefa pela liberdade humana. Por ser a paz dom de Deus, o ser humano deve acolher o caminho por Ele proposto para realizá-la e dela desfrutar. Esse caminho está inscrito na própria natureza humana e emerge na consciência das pessoas e dos povos, como nos ensinava João Paulo II: “a ‘gramática’ transcendente, ou seja, o conjunto de regras da ação individual e do recíproco relacionamento entre as pessoas de acordo com a justiça e a solidariedade, está inscrita nas consciências, nas quais se reflete o sábio projeto de Deus. Como recentemente quis reafirmar, « nós cremos que na origem está o Verbo eterno, a Razão e não a Irracionalidade ». A paz é, portanto, também uma tarefa que compromete cada indivíduo a uma resposta pessoal coerente com o plano divino. O critério que deve inspirar esta resposta não pode ser senão o respeito pela “gramática” escrita no coração do homem pelo seu divino Criador”. O Santo Padre insiste com veemência no caráter objetivo das leis que devem reger a busca da paz. Não é possível construir uma convivência humana justa e harmoniosa se não houver princípios de conduta universalmente válidos a que livremente se obriguem as pessoas e os povos. “Nesta perspectiva, as normas do direito natural não devem ser consideradas como diretrizes que se impõem a partir de fora, como se oprimissem a liberdade do homem. Pelo contrário, devem ser acolhidas como uma chamada a realizar fielmente o projeto universal divino inscrito na natureza do ser humano. Guiados por tais normas, os povos – no âmbito das respectivas culturas – podem aproximar-se assim do maior mistério, que é o mistério de Deus. Por isso, o reconhecimento e o respeito pela lei natural constituem também hoje a grande base para o diálogo entre os crentes das diversas religiões e entre estes e os não crentes. É este um grande ponto de encontro e, portanto, um pressuposto fundamental para uma autêntica paz”. O caminho para concretizar a paz – a realização histórica da dignidade de todas as pessoas – é a prática da justiça, o reconhecimento efetivo dos direitos humanos pela busca incessante do bem comum. Citando Gandhi – « O Gange dos direitos desce do Himalaia dos deveres » -, o Santo Padre nos faz lembrar João XXIII que, na “Pacem in Terris”, ao falar dos direitos humanos ensina-nos que a cada direito corresponde um dever. Direitos e deveres brotam da própria dignidade da pessoa e, portanto, antecedem às decisões livres dos indivíduos e das coletividades e a eles se impõem como apelo do próprio Criador. Não nos falta hoje tanto a consciência dos próprios direitos, falta-nos – e muito – a consciência dos direitos dos outros e, portanto, de nossos deveres em relação ao próximo. Somente uma adesão sincera e irrestrita à ordem moral, que brota da dignidade da pessoa, torna possível a construção da paz. A mudança da sociedade começa na consciência e na liberdade de cada pessoa.
Evangelizar na cidade e evangelizar a cidade
Evangelizar na cidade é, com certeza, um desafio permanente para a ação evangelizadora da Igreja. Como fazer um contato suficientemente forte com pessoas, com grupos e com os mais diversos ambientes, na Cidade, de modo a sensibilizá-los, de forma permanente, para a proposta do evangelho? Em um universo cultural onde se entrecruzam as mais diversas influências, do ponto de vista das idéias e dos valores; em um mundo onde as pessoas, em um mesmo dia, se movem por espaços existenciais os mais diversos, quase sempre totalmente secularizados; em uma sociedade em que as pessoas vivem imersas na multidão, em estafante corre-corre, prisioneiras de múltiplas relações funcionais, sonhando sempre de novo com a trégua dos feriados ou dos finais de semana, evangelizar é, sem dúvida, um grande desafio e uma grande urgência. A cidade é o sonho e também a decepção dos que migram em busca de dias melhores. É o lugar do encontro, da possibilidade do progresso, da comunhão e da solidariedade, mas é também o lugar da solidão, dos condomínios fechados, do crime, da disseminação dos vícios, das negociatas, do contraste entre o luxo, concentrado nos centros, e a miséria, espalhada pelas periferias. Descobrir como evangelizar na Cidade é o único caminho possível para evangelizar a Cidade e fazer dela um sinal da Cidade futura, da qual a glória de nosso Deus será o sol e o Cordeiro a lâmpada (Ap 22,23). Evangelizar a cidade pode ser traduzido por aquilo que escreveu o Santo Padre Paulo VI na “Evangelii Nuntiandi”: trata-se “de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação” (n. 19) Este é o grande desafio que a Igreja em nosso mundo vem enfrentando e que a Igreja quer assumir com renovado ardor e aplicada inteligência. E isto ela o deve fazer “a partir sempre da pessoa e fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus” (EN 20). A finalidade é aquela assinalada pelo grande objetivo das DGAE no Brasil: “para formar o Povo de Deus e participar da construção de uma sociedade justa e solidária”. São dois momentos de um único processo. É preciso construir uma Igreja forte, madura na fé, vitalmente consciente de seu mistério, celebrativa e orante, rede de comunidades, fortalecida pela Eucaristia e reunida em torno de seus pastores e que seja, ao mesmo tempo, fermento de uma nova sociedade pelos valores que vive e propaga e por uma ação inteligente, organizada, de todos, em todos os níveis da vida social. É a partir da Cidade que se poderá construir uma Nação onde todos se sintam plenamente cidadãos. Estamos convencidos de que não teremos uma sociedade mais justa “se não houver em primeiro lugar homens novos, pela novidade do batismo e da vida segundo o evangelho” (EN 18). “A vida segundo o evangelho”, conseqüência do batismo, exige de todos os cristãos uma participação social que ajude na construção da justiça e da fraternidade.
É com este espírito e com esta disposição que a Igreja deve abraçar com amor a missão de participar da construção de um futuro melhor para todos os brasileiros. Estas duas dimensões “formar o Povo de Deus e participar da construção de uma sociedade justa e solidária” devem estar profundamente articuladas no processo evangelizador. O processo de evangelização da cidade deve, além de levar à conversão pessoal e à integração na vida eclesial, ter forte incidência na dinâmica da sociedade de modo a contribuir para a sua transformação, pois na palavra de Paulo VI, pela evangelização a Igreja “procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e coletiva dos homens, a atividade em que eles se aplicam, e a vida e o meio concreto que lhes são próprios”. Por outro lado, dever-se-á cuidar que a participação nas ações concretas que objetivam a transformação social seja de tal forma imbuída do espírito do evangelho que ela mesma torne possível o anúncio explícito da pessoa de Jesus e de sua Igreja. Articular, na experiência concreta, essas duas prioridades é tarefa a ser realizada mediante um cuidadoso processo de formação. Nossas paróquias, áreas e regiões pastorais devem, através das “escolas da Fé”, de retiros e encontros, cuidar que todos os agentes de pastoral recebam uma adequada formação espiritual e teológica para essa grandiosa missão.
Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues
Arcebispo de Sorocaba (SP)