Formação

A unidade da verdade

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Pe. João Wilkes R. Chagas Junior

Refletindo sobre a Encíclica Fides et Ratio, constatamos que muitas vezes nos defrontamos na vida, em contextos e situações diversas, através dos meios de comunicação ou de contatos pessoais, com duas posições: de um lado se me apresenta a desconfiança na razão em suas diversas formas – agnosticismo, relativismo, pluralismo indefinido, nihilismo e até mesmo o fideísmo. Por outro lado me desafia o racionalismo que idolatra a razão humana, prescindindo de suas limitações, e a declara a única forma válida de conhecimento, chegando muitas vezes a desprezar a filosofia no seu aspecto pleno, e absolutizando áreas do conhecimento.
É preciso reconhecer que existem diversas formas de verdade (cf. FR 30):
a) as que se assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência: ordem da vida cotidiana e da pesquisa científica;
b) as de caráter filosófico: alcançadas através da capacidade especulativa do intelecto humano;
c) religiosas: têm de algum modo raízes também na filosofia. Respostas que as diversas religiões oferecem às questões últimas.
Filosofia e teologia, porém, em última instância, têm como objeto comum o fim último da existência pessoal. Com meios e conteúdos diversos apontam para o mesmo fim. Ambas nascem também do desejo de conhecer, comum a todos os homens e, no caminho para a realização deste desejo, não são concorrentes, mas têm cada uma o seu “espaço próprio de realização” (FR 17). Como já dizia Pe. Mongillo ao falar sobre o amor, sobre a amizade: “respeitar o outro na sua alteridade, mas não deixá-lo sozinho”. Filosofia (amor à sabedoria) e teologia (“Deus é Amor” – 1 Jo 4, 8) estão profundamente radicadas no amor, na amizade. Não podem, assim, jamais competir, como rivais, no caminho para o conhecimento da verdade, mas, como “as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” (FR 1), convivem juntas, em harmonia.
A contribuição original do mundo bíblico para “o grande mar da teoria do conhecimento é a convicção de que existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé” (FR 16). O homem de fé não se rende simplesmente ao decorrer dos acontecimentos ou limita-se a descrevê-lo, mas reconhece a presença de Deus na história que age por meio da Sua Providência. Ele sabe que “a mente do homem dispõe o seu caminho, mas é o Senhor quem dirige os seus passos” (Pv 16,9).
No desejo insaciável de conhecer, muitas vezes encontro a fronteira do limite da razão. É exatamente aqui que a fé me convida a dar o grande salto, a mergulhar no mistério de Deus e da Sua transcendência, deixando que Ele me dê de graça aquilo que por meus esforços não consigo alcançar. Aqui a razão é libertada pela fé, podendo entrar em campos outrora inalcançáveis.
Não obstante o cansaço da procura (Pv 30,1-6) o homem de fé não desiste. Ele é consciente de que é chamado por Deus a prosseguir no caminho, apesar dos assaltos da fadiga e da dúvida. Deus é fiel e mantém acesa no coração do homem a chama do amor por tudo aquilo que é belo, bom e verdadeiro.
Em Rm 1,20 S. Paulo atribui “à razão humana uma capacidade tal que parece quase superar os seus próprios limites naturais” (FR 22): a partir do conhecimento sensorial, raciocinar criticamente sobre o mesmo e chegar “à causa que está na origem de toda a realidade sensível. Neste significativo texto paulino está afirmada a capacidade metafísica do homem” (FR 22).
Mas por que no dia a dia me defronto com tantas dificuldades no caminho da verdade? Por que é tão difícil ver com clareza? A Revelação Divina, no livro do Gênesis me dá a resposta: o homem, movido pelo seu orgulho, resiste a reconhecer sua radical dependência de Deus e tenta seguir os seus próprios caminhos, sem Ele. Neste exato momento ocorre a quebra, a fragmentação: agora já não é tão fácil e natural para o homem viver a unidade entre fé e razão; a busca do conhecimento se torna então árdua e o acesso ao conhecimento de Deus pela fé é bloqueado pelo pecado.
“A vinda de Cristo foi o acontecimento de salvação que redimiu a razão de sua fraqueza, libertando-a dos grilhões onde ela mesma se tinha algemado” (FR 22).
S. Paulo vem então nos ensinar que a nossa fragilidade é exatamente o pressuposto da nossa força (cf. 2 Cor 12,10). Na cruz de Cristo encontramos a mais radical expressão dessa verdade: no Crucificado está contido o mistério da Sabedoria e do poder de Deus. É aqui que a razão e a fé podem se encontrar. “Como é grande o desafio lançado à nossa razão e como são enormes as vantagens que terá, se ela se render!”(FR 23)
Existe no coração de todo homem um desejo de Deus, que S. Agostinho tentou expressar do seguinte modo: “Senhor, Tu nos criastes para Ti e inquieto estará o nosso coração enquanto não repousar em Ti”. O homem tem sede de infinito, a sua razão é sedenta, mesmo sem o saber, de Deus. Um meio privilegiado através do qual claramente se manifesta esta abertura transcendental do homem é a arte nas suas mais diversas expressões.
A filosofia aparece como expressão privilegiada da inteligência humana, que recolhe este movimento do homem para Deus e o exprime “com os meios e segundo as modalidades científicas que lhe são próprias”. (FR 24)
“A Igreja continua profundamente convencida de que fé e razão se ajudam mutuamente’, exercendo, uma em prol da outra, a função tanto de discernimento crítico e purificador, como de estímulo para progredir na investigação e no aprofundamento”. (FR 100)
Mesmo que não notemos com clareza, o pensamento filosófico exerce uma grande influência nas nossas vidas, estando implicitamente presente na cultura e nos comportamentos pessoais e sociais. Também no pensamento teológico está presente a filosofia. Poderíamos aqui repetir com S. Agostinho que “a graça supõe a natureza”.
A Igreja reconhece a autonomia da filosofia, bem como da teologia e das diversas ciências, mas sabe e proclama também que esta genuína autonomia não implica divisão ou fragmentação. É uma autonomia construída sobre a base da unidade (que não é unificação). A teologia precisa da filosofia e vice-versa. Aquela faz com que essa se abra a “novos horizontes apontando para sucessivos significados que a razão está chamada a aprofundar”. A filosofia, por sua vez, manifesta a dignidade humana e sua capacidade de conhecer a verdade, “o seu anseio pelo sentido último e definitivo da existência” (FR 102).
“Graças à mediação de uma filosofia que se tornou também verdadeira sabedoria, o homem contemporâneo chegará a reconhecer que será tanto mais homem quanto mais se abrir a Cristo, acreditando no Evangelho.” (FR 102)
O documento Fides et Ratio aponta também a importância que a filosofia tem no diálogo com as culturas, com as outras religiões e com a humanidade em geral, já que “o pensamento filosófico é freqüentemente o único terreno comum de entendimento e diálogo com quem não partilha a nossa fé”. (FR 104). É exatamente aqui um terreno privilegiado de unidade onde os homens de boa vontade, que honestamente buscam a verdade, podem juntos cooperar para o progresso da humanidade e a resolução dos seus problemas mais graves.
Como nos diz o Papa João Paulo II (cf. FR 4), no meio da diversidade que é própria do espírito humano, existe “um núcleo de conhecimentos filosóficos, cuja presença é constante na história do pensamento. (…) pense-se, além disso, em algumas normas morais fundamentais que geralmente são aceitas por todos”. É uma espécie de “filosofia implícita”, uma herança comum de conhecimento que está aí justamente para ser partilhado. Este “núcleo de conhecimentos” constitui-se, assim, em ponto de referência na busca de um conhecimento unitário, articulado, sistemático.
Os valores da filosofia e da ética são “manifestação característica e imprescindível da pessoa humana” e, portanto, o progresso da ciência nunca pode se desenvolver de modo marginal a esta consideração. Existe um “horizonte sapiencial” no conhecimento a ser descoberto, um horizonte de unidade.
“O cientista está bem cônscio de que ‘a busca da verdade, mesmo quando se refere a uma realidade limitada do mundo ou do homem, jamais termina; remete sempre para alguma coisa que está acima do objeto imediato dos estudos, para os interrogativos que abrem o acesso ao Mistério”. (FR 106).

Shalom Maná


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