A palavra “violência” nos lembra força bruta que arromba, fere, viola, desrespeita a dignidade de pessoas ou de realidades sagradas. A violência está presente no mundo desde suas origens. Vem na Bíblia expressa no assassinato de Abel, inocente e justo, perpretado por seu irmão, Caim. Ela é conseqüente à tentativa, por parte do homem, de apoderar-se da condição divina: “sereis como deuses”, acima do bem e do mal, absolutos senhores do próprio destino e legisladores para si mesmos de acordo com as próprias vontades, ou caprichos. Só que Deus não é assim. Deus é amor que se dá. Dele nós não podemos nos apoderar por um ato de conquista, de força. Podemos, sim, acolher seu amor como filhos, reconhecidos e agradecidos. A violência começa quando o ser humano desconfia de Deus e não o reconhece mais como um Pai amoroso e generoso que se doa todo ao filho, mas começa a vê-lo como um poderoso déspota temeroso de que o filho lhe venha tomar o lugar. Foi essa a insinuação da serpente, símbolo do ódio, do ressentimento e da inveja do inimigo: “Oh, não! Vocês não morrerão. Deus sabe que vossos olhos se abrirão quando comerdes dela – da árvore do conhecimento do bem e do mal – e sereis como deuses, versados no bem e no mal(Gên 3,4s.)”. É assim que o ser humano tenta apropriar-se, por um ato de violência, da prerrogativa divina de ser para a humanidade o caminho da vida. Freud tentou explicar essa condição de ódio ao pai, e de culpa, com o mito de um parricídio nas origens. Pensou assim substituir a concepção cristã do pecado original. A luta pelo poder entre os irmãos se torna inevitável com a morte do pai: quem haverá de se banquetear com sua carne? A convivência entre os seres humanos vai, seguindo essa lógica, tornar-se uma guerra permanente onde cada um tentará impor aos outros sua própria vontade como lei universal. O próximo se torna o concorrente que deve se submeter ou ser eliminado. Quando não se sabe ser filho não se sabe também ser irmão. Quando se desacredita do pai como crer no outro que dele veio? O outro só importa na conspiração. Depois se torna também inimigo.
Há, porém, caminho de volta, por mais distantes que andem os filhos dispersos. Houve um alguém, de nossa raça, que foi só e plenamente filho: Jesus Cristo. Aquela humanidade concreta, Jesus de Nazaré, estava totalmente tomada pela filiação divina: era o Filho, plenamente identificado com o Pai, revelação de seu amor que não desistiu de seu projeto de envolver em seu infinito afeto a humanidade inteira com todo o universo. Em seus lábios a Epístola aos Hebreus coloca essas palavras: “eis-me aqui – no rolo do livro está escrito a meu respeito – eu vim, ó Deus, para fazer tua vontade”(Heb 10,8). No evangelho de João, Jesus declara: “meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou” (Jo 4,34). E essa é também sua alegria, porque o amor infinito do Pai inunda-lhe o ser: “eu estou no Pai e o Pai está em mim”(Jo 14,11), alegria que Ele deseja seja nossa: “a fim de que em si tenham minha plena alegria”(Jo 17,13). Um Filho assim, sabe como é Deus e sabe que Deus é puro amor para toda a humanidade. Sua missão é restaurar no coração dos irmãos a confiança no Pai, refazer neles a imagem de Deus estragada pelo ódio e pela desobediência. Por isso ensina-nos a Epístola aos Hebreus: “anunciarei o teu nome a meus irmãos, em plena assembléia eu te louvarei; e mais: porei n’Ele a minha confiança; e ainda: eis-me aqui com os filhos que Deus me deu”(2,12-13). Jesus é o nosso irmão, identificado com o Pai, que nos revela seu amor, amando-nos até a morte e morte de Cruz e se dando a nós no banquete – não o totêmico -, na mesa da eucaristia. A lei de seu Deus é: amar até morrer. O caminho é reconhecer Deus como Pai, buscar sua vontade em tudo e re-introduzir no mundo a dinâmica do amor, banindo definitivamente a concorrência e a luta pelo poder. Eis a lei do Pai, o ensinamento que salva: “assim como o Pai me amou, também eu vos amei…Este é meu mandamento: amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei…”(Jo 15,9 e 12).
È claro que são necessárias urgentes e inteligentes medidas de segurança para evitar a onda de violência que nos assusta a todos e que ceifa tantas vidas inocentes. A violência precisa ser coibida. Tenho lido e tenho ouvido reflexões e propostas nesse sentido e peço a Deus que se tornem realidade para o bem da sociedade e defesa do povo.
Extirpar suas raízes, entretanto, só através de um retorno às fontes do amor que estão em Deus. Ghandi, inspirado na tradição hindú e no evangelho de Jesus, também ensinava: “violência, nem em pensamento”. Penso que uma pessoa que, como Francisco de Assis, consegue tirar do próprio coração todo sentimento de destruição, estará contribuindo generosamente para eliminar a violência do mundo.
Dom Eduardo Benes
Arcebispo de Sorocaba (SP)