Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues
Apalavra “violência” nos lembra força bruta que arromba, fere, viola,desrespeita a dignidade de pessoas ou de realidades sagradas. Aviolência está presente no mundo desde suas origens. Vem na Bíbliaexpressa no assassinato de Abel, inocente e justo, perpretado por seuirmão, Caim. Ela é conseqüente à tentativa, por parte do homem, deapoderar-se da condição divina: “sereis como deuses”, acima do bem e domal, absolutos senhores do próprio destino e legisladores para simesmos de acordo com as próprias vontades, ou caprichos. Só que Deusnão é assim. Deus é amor que se dá. Dele nós não podemos nos apoderarpor um ato de conquista, de força. Podemos, sim, acolher seu amor comofilhos, reconhecidos e agradecidos. A violência começa quando o serhumano desconfia de Deus e não o reconhece mais como um Pai amoroso egeneroso que se doa todo ao filho, mas começa a vê-lo como um poderosodéspota temeroso de que o filho lhe venha tomar o lugar. Foi essa ainsinuação da serpente, símbolo do ódio, do ressentimento e da invejado inimigo: “Oh, não! Vocês não morrerão. Deus sabe que vossos olhos seabrirão quando comerdes dela – da árvore do conhecimento do bem e domal – e sereis como deuses, versados no bem e no mal(Gên 3,4s.)”. Éassim que o ser humano tenta apropriar-se, por um ato de violência, daprerrogativa divina de ser para a humanidade o caminho da vida. Freudtentou explicar essa condição de ódio ao pai, e de culpa, com o mito deum parricídio nas origens. Pensou assim substituir a concepção cristãdo pecado original. A luta pelo poder entre os irmãos se tornainevitável com a morte do pai: quem haverá de se banquetear com suacarne? A convivência entre os seres humanos vai, seguindo essa lógica,tornar-se uma guerra permanente onde cada um tentará impor aos outrossua própria vontade como lei universal. O próximo se torna oconcorrente que deve se submeter ou ser eliminado. Quando não se sabeser filho não se sabe também ser irmão. Quando se desacredita do paicomo crer no outro que dele veio? O outro só importa na conspiração.Depois se torna também inimigo.
Há,porém, caminho de volta, por mais distantes que andem os filhosdispersos. Houve um alguém, de nossa raça, que foi só e plenamentefilho: Jesus Cristo. Aquele ser humano concreto, Jesus de Nazaré,estava totalmente tomado pela filiação divina: era o Filho, plenamenteidentificado com o Pai, revelação de seu amor que não desistiu de seuprojeto de envolver em seu infinito afeto a humanidade inteira com todoo universo. Em seus lábios a Epístola aos Hebreus coloca essaspalavras: “eis-me aqui – no rolo do livro está escrito a meu respeito -eu vim, ó Deus, para fazer tua vontade”(Heb 10,8). No evangelho deJoão, Jesus declara: “meu alimento é fazer a vontade daquele que meenviou” (Jo 4,34). E essa é também sua alegria, porque o amor infinitodo Pai inunda-lhe o ser: “eu estou no Pai e o Pai está em mim”(Jo14,11), alegria que Ele deseja seja nossa: “a fim de que em si tenhamminha plena alegria”(Jo 17,13). Um Filho assim sabe como é Deus e sabeque Deus é puro amor para toda a humanidade. Sua missão é restaurar nocoração dos irmãos a confiança no Pai, refazer neles a imagem de Deusestragada pelo ódio e pela desobediência. Por isso ensina-nos aEpístola aos Hebreus: “anunciarei o teu nome a meus irmãos, em plenaassembléia eu te louvarei; e mais: porei n’Ele a minha confiança; eainda: eis-me aqui com os filhos que Deus me deu”(2,12-13). Jesus é onosso irmão, identificado com o Pai, que nos revela seu amor,amando-nos até a morte e morte de Cruz e se dando a nós no banquete -não o totêmico -, na mesa da eucaristia. A lei de seu Deus é: amar atémorrer. O caminho é reconhecer Deus como Pai, buscar sua vontade emtudo e re-introduzir no mundo a dinâmica do amor, banindodefinitivamente a concorrência e a luta pelo poder. Eis a lei do Pai, oensinamento que salva: “assim como o Pai me amou, também eu vosamei…Este é meu mandamento: amai-vos uns aos outros assim como eu vosamei…”(Jo 15,9 e 12).
Èclaro que são necessárias urgentes e inteligentes medidas de segurançapara evitar a onda de violência que nos assusta a todos e que ceifatantas vidas inocentes. A violência precisa ser coibida. Tenho lido etenho ouvido reflexões e propostas nesse sentido e peço a Deus que setornem realidade para o bem da sociedade e defesa do povo.
Extirparsuas raízes, entretanto, só através de um retorno às fontes do amor queestão em Deus. Ghandi, inspirado na tradição hinduísta e no evangelhode Jesus, também ensinava: “violência, nem em pensamento”. Penso queuma pessoa que, como Francisco de Assis, consegue tirar do própriocoração todo sentimento de destruição, estará contribuindogenerosamente para eliminar a violência do mundo.